(2015) Dave: Sessão III

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-Você veio semana passada.

-Não virei nas duas próximas.

-Não vai mais passar o final de ano em Londres?

-Serei obrigado a viajar.

"Não serei, mas irei. Foi o que eu disse em casa e, de alguma forma, passou a ser verdade. E então Alex torceu a minha orelha. Inacreditável que a Alex ainda faça isso. Inacreditável que eu ainda deixe a Alex fazer isso. Três pessoas tentaram me domar na vida. A Malu com seus castigos, meu pai com seus berros, a Alex torcendo a minha orelha. Todos fracassaram, mas a Alex continua torcendo a minha orelha. Não adianta tentar intimida-la ou traçar qualquer tipo de limite. Alex vive de acordo com suas próprias regras"

-Pensei que natais fossem importantes na sua família.

-E são. No circo que julgam ser a minha família. Setenta por cento das pessoas ali não tem qualquer laço de sangue comigo.

-E para os que têm laço de sangue? Não é?

"Pergunta complicada. Minha família era eu, minha mãe, Josh, Baby e meu pai. É assim que famílias deveriam ser. Então apareceu a Alex. Uma mulher absolutamente linda, muito mais nova que o meu pai. Mulher demais para o meu pai. Depois dela, veio um irmão que já havia nascido há anos e do qual nenhum de nós jamais havia tido notícias, e um irmão mais novo para meu pai tentar sua fórmula viciada e fracassada. Se é por esse amontoado de pessoas que o Scott entende 'minha família de sangue', então sim, natal é importante para eles"

-Vocês têm rituais?

-Eles, sim.

-Você nunca participou de nenhum deles?

-Claro que sim. Antes de me mudar, eu participava, como toda criança.

-Rituais são importantes para a identidade e construção de laços. Você tem irmãos que já saíram de casa também, certo?

-Sim, Josh e Anna.

-Eles não participam desses rituais?

-Não é uma obrigação.

-Ainda assim, participam?

-Creio que sim.

-Não é divertido?

-Divertido? Ir ao sótão descer caixas, achar todo e qualquer tipo de lixo e transformá-lo em algo com menos utilidade ainda? Não, não é divertido.

-Passar tempo em família envolvido em um ritual, isso não é divertido?

"Não, não é. Eu e meu pai não temos qualquer espécie de relacionamento. Josh é imaturo e teimoso e Baby se veste e fala como uma vagabunda. Meu irmão mais novo é uma criança como qualquer outra"

-E a Alex?

-O que tem a Alex?

-Você menciona bastante a Alex, mas não a relacionou na lista de pessoas da família. Você não a considera dessa forma?

-Sim, a considero.

-Você parece sempre incomodado com o casamento dela com o seu pai.

"Se hoje há um grupo chamado família, ainda que seja um amontoado de pessoas, é graças à Alex. Se algo se salvou da nossa infância, foi por causa da Alex. Se existe algo que me motive a ir a Londres de tempos em tempos e sentar nessa cadeira ainda que perca várias consultas, é a Alex"

-Nada se deve ao seu pai?

-Não.

-Você disse uma vez que ele viajava muito com vocês quando eram menores.

-Ele tem dinheiro.

-Você não tem nenhuma boa lembrança do seu pai? Da sua infância?

"Houve um dia, na Sardenha. Estávamos os três, eu, Josh e Baby, dentro do mar com o meu pai. Lembro de me sentir bem. Também lembro da Alex na areia, gritando pra gente ir lá beber água e chupar laranja. Havia uma sensação de lar"

-Se a Alex é tão importante para a sua família, por que a presença dela o incomoda?

-Não disse que incomoda.

-Você disse que ela é mulher demais para o seu pai.

-E é.

-Por que?

"Não acho ruim que meu pai tenha conhecido a Alex. Se há em mim qualquer sentimento que se assemelhe à gratidão, é por isso. Meu pai não é uma pessoa má e sua crueldade não é premeditada. O que aconteceu com a minha mãe não fez parte de um plano sórdido. Ainda assim, aconteceu. Meu pai é prisioneiro da sua própria mesquinhez. Temo por todos nós, inclusive pela Alex"

-Ainda assim, seu pai os criou bem. Seu irmão se forma em breve em finanças, não é isso? Sua irmã está na faculdade. Eles parecem ser unidos e parecem ser uma família saudável. Seu pai está lá. Quem se afastou foi você.

-Nosso tempo acabou.

-Ainda temos meia hora.

-Não, ele acabou.

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Este POV faz parte da Semana do Dave, que acontece até dia 18/01 no grupo Realidades Paralelas da Mari.


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora