Se você ainda não chegou a 1998 nos Diários, este POV contém spoilers
Vamos recapitular e ver como eu me meti em mais uma confusão.
Tudo começou com a porcaria do pescador. Realmente preciso de um pescador pro meu livro, e verdade que já pedi ajuda com a pesquisa no passado, mas porra, eu conheço dois, de repente até três, e aí fui e liguei para a Rê perguntando se ela tinha alguém. Sabe o que é isso, né? É aquele bicho que mora no meu corpo e dorme boa parte do tempo, e então ele começa a se espreguiçar, abre os olhos e fodeu. Isso cismou de acontecer quando a Naomi estava viajando, e cara, meu apartamento tem até a porra de um eco! É muito corredor, muito quarto, tudo muito vazio. Eu sempre digo que vou trabalhar, mas o silêncio é tanto que não consigo me concentrar. Ler, nem pensar. Podia ter ligado pra qualquer um, mas acabei no telefone com a Rê, perguntando se ela conhecia um pescador.
Então o segundo passo foi ela me convidar para jantar. Acabou sendo útil, foi um bom pescador, histórias sensacionais. Fiquei pra ajudar a arrumar as coisas. Mentira, era o bicho me comandando. Mas tenho mesmo esse lance de arrumar, funciona no automático. Quando eu era moleque, éramos apenas meu pai e eu. Meu pai passava o dia inteiro limpando a escola e, quando chegava em casa, não lavava nem o próprio copo. Ainda por cima, onde a gente morava tinha um banheiro só pro prédio inteiro e os vizinhos não estavam nem aí. Ou eu me mexia, ou a gente largava o apartamento pros ratos. Então cresci assim, limpando o que sujo, ajudando a Rê com a louça, e em seguida fomos conversar enquanto matávamos a garrafa de vinho.
Aí já era. A Rê veio com uma história de que eu tenho um segredo, como se eu conseguisse guardar segredos de alguém, falou do meu QI... Só que ela não estava realmente interessada nisso. Ela estava se insinuando, sabe? Toda a linguagem corporal de mulher que está a fim e, mais que isso, mulher objetiva e que sabe o que quer e está a fim.
Chegamos ao quarto passo: A Rê é linda pra caralho.
E aí o dia amanheceu, o bicho dormiu e não acredito no que eu fiz. Eu sou um merda, o que não chega a ser exatamente uma grande novidade. A diferença é que eu realmente acreditava que estava deixando de ser.
O que me deixa mais furioso é que, depois de tudo o que me aconteceu e que, infelizmente, aconteceu na vida dos outros, eu achei que o bicho estava domado. Não morto, apenas sob controle. Eu encontrei a Naomi, a mulher perfeita pra mim. Ela não conseguia aplacar aquela dor filha da puta, mas eu descobri como transferi-la para os outros e, ainda que seja incapaz de machucar alguém conscientemente e sem consentimento, há, sim, um jeito de fazê-lo de forma consensual. Há formas de encontrar quem esteja a fim e até curta doer no meu lugar.
Mas a Rê não, cara. Tudo menos a Rê. Eu não podia tê-la envolvido nisso. Nem por ela, nem por mim, e não consigo nem imaginar se um dia a Malu descobrir.
Eu não posso machucar a Rê, mas sei que vai acontecer. Isso é o que eu faço. Não posso porque ela é minha amiga, é uma das minhas grandes amigas, e caralho, qualquer envolvimento com ela mataria qualquer chance que eu... não tenho com a Malu e não terei nunca. Mas o pior nem é isso. É que a Malu não entenderia o meu casamento com a Naomi. Que o fato de eu dormir com a Rê e com uma porrada antes e depois dela não faz diferença, e que provavelmente é isso mesmo que a Naomi está fazendo no Japão. E tudo bem, nosso acordo é esse. Mas eu ficaria menor aos olhos da Malu, e isso eu não suportaria.
Daria os meus dois braços para que a Malu não fosse assim. Para que ela descobrisse que existe um mundo inteiro além do quintal de casa no qual se colocou, e que ela é forte o suficiente para botar os pés para fora do portão e atravessar a rua. Que ela fez mais e conquistou mais que todos nós juntos, e isso sem se dar conta. Até argumentam que foi por fuga ou covardia, mas o fato é que, qualquer que tenha sido a motivação, ela fez, fez bem e fez sozinha. Mas ela pode ir muito, muito além.
Mas o quintal de casa não tem o menor espaço para o que eu fiz, e também daria meus dois braços para voltar atrás. Ela criou o bicho, ela o alimenta, e ela, sem a menor dúvida, o odiaria. E me odiaria por abriga-lo.
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Esse POV faz parte da Semana do Eddie, que está acontecendo no grupo Realidades Paralelas da Mari.
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...