(2010) Malu: Primeira conversa

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Sempre, sempre, sempre quis ter uma filha. Eu achava que seria mais ou menos assim:

· Ela teria uma caixa de bijuterias

· Ela teria uma caixa de prendedores de cabelo

· Ela teria longos cabelos nos quais usaria todos os seus prendedores de cabelo

· Ela vestiria sempre rosa e afins, tipo roxo, lilás e violeta

· Ela adoraria brincar com as mais lindas bonecas

· Ela faria balé

· Ela seria a primeira bailarina de alguma companhia chique internacional

· Eu a surpreenderia usando meu estojo de maquiagem

· Eu a surpreenderia usando meus sapatos de salto

· Ela me amaria e veneraria e me transformaria em modelo de feminilidade e ideal a ser atingido

Angie frustrou, uma a uma, todas as expectativas acima.

· Angie não usa bijuteria

· Angie tem uns dois elásticos de cabelo

· Angie não tem noção de como usar seus elásticos de cabelo de forma esteticamente aceitável

· Angie sempre odiou bonecas

· Ao invés de balé, Angie quis fazer futebol

· Angie é a pior goleira que o Reino Unido tem notícias. Aliás, arriscaria dizer: Que o mundo todo tem notícias

· Já surpreendi a Angie com meu estojo de maquiagem, mas porque estava usando a sombra prateada pra colorir as estrelas de um desenho

· Angie só usa tênis, chuteira, chinelo de dedo ou (sim, é verdade) crocs

· Quero crer que Angie me ama, mas ela não me veneraria nem que eu implorasse

E a única coisa, a unicazinha que eu sabia que era parte integrante e atroz de ter uma filha, eu não podia escapar: A Conversa.

Com o Victor, por mais apavorante e por mais dor de cabeça e de barriga que tenha causado, foi fácil. Foi ridículo. Tudo bem que ele terminou grávido com vinte anos, mas ainda assim foi uma maravilha. Tudo o que eu tinha de fazer era chorar e ganir no ouvido do Tom e ele assumia o caso. Assumiu mal, diga-se de passagem, vide a gravidez citada acima. Com o Tommy, isso ainda nem tinha acontecido, pois ele leva realmente a sério quando eu digo que ele é um bebê. Juro que daqui a pouco começo a me preocupar, o menino não amadurece nunca, mas por enquanto estou só aproveitando enquanto não preciso berrar e arrancar os cabelos na orelha do pai da criança. Mas o problema é que a Angie é menina. Se recorrer ao Tom, é capaz da conversa ser:

-Pô, Angie, ficou menstruada. Maneiro, hein? Meio nojento, mas maneiro. Agora feche as pernas. Homem não vale nada, sei disso porque sou homem.

Pior que foi mais ou menos essa a conversa que a mamãe teve comigo. Não exatamente com essas palavras, mas a mesma mensagem. E, como fiz o raio da promessa de ser o contrário da mamãe, tive de atravessar o corredor e abrir a porta do quarto da Angie, rezando para que ela tivesse fugido pela janela e não estivesse lá.

Ai, droga, ela estava.

Entrei no seu lindo quarto limpíssimo, organizadíssimo, como só a minha menininha teria. E as semelhanças param por aí. Cara, a Angie é tão diferente de mim em todo o resto que dá até arrepio. Com os meus outros filhos, por mais que houvesse percalços no meio do caminho, a maternidade foi algo totalmente natural e sem (muitas) brigas desnecessárias. Todos falam pelos cotovelos, todos deixaram a porta escancarada para eu passar cheia de amor e deliciosos cookies de baunilha com gotas de chocolate. Angie, não. Ela é boazinha de dar dó. Faz coisas como me ajudar no supermercado e na cozinha espontaneamente, segurar a porta para eu passar com as compras, ver que eu estou sozinha (o que é raro, até por questões de densidade demográfica da casa) e sentar ao meu lado pra assistir à televisão e me fazer companhia. Mas ela é tão fechada, tão meu oposto, tão "Olha só, vamos deixar uma coisa clara, você é minha mãe, não minha amiga, então para com essa palhaçada de ficar me abraçando e miando no meu ouvindo".

O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora