(1989) Kate: Bebê não se faz com espirro

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Foi na época que eu e Vince resolvemos morar juntos. De maio a dezembro de 88, tive duas colegas de apartamento. A primeira não durou nem duas semanas, só o tempo de eu a vir ameaçar dar uma sapatada no Alexandre o Grande e coloca-la porta afora pelo cabelo mal pintado dela. Logo depois, a Lita foi dividir o apartamento comigo, e pensei que seria uma ótima ideia, ela é da turma, é gente boa, não é santa demais, mas está dentro dos níveis de porra-louquice aceitáveis, ou seja, que não entrassem em conflito com os meus, ela é ariana, eu sou escorpiana, então achei que fosse dar tudo certo.

Só que a Lita é entrona demais, puta que pariu! Começou a me incomodar tanto e eu passava tanto tempo no Vince pra fugir dela que, quando ele resolveu alugar um apartamento só pra ele, resolvemos morar juntos oficialmente, já que era isso que estávamos fazendo na prática. Os meninos estavam começando a ganhar dinheiro de verdade, eu continuava bem dura, mas pensei que, se era pra aguentar defeitos dos outros, pelo menos que fosse os de alguém que eu amava, ainda que o Vince seja bastante perfeito e gostoso, bem treinado e já tenha entendido que nem fodendo vou lavar aquele uniforme fedido do futebol.

Ok, então a época foi essa. Eu e Vince estávamos procurando um apê que não fosse caro demais e eu estava ligando pra Rê nos intervalos. O final do ano tinha sido meio louco, eu e os meninos de agenda cheia, Rê em Paris, e logo que passou o ano novo ela resolveu dar uma reunião pra todo mundo se ver. Tocou o telefone, ela desligou surtada, dizendo que precisava voltar para Paris, que a Malu precisava dela. Surtou todo mundo junto, lógico, e começou uma histeria coletiva que a Malu havia tido uma recaída. Cara, será possível que eu sou o único ser pensante desse povo, ou pelo menos a única pessoa que sabe fazer contas? Até que a Rê finalmente voltou, e disse que estava tudo bem, que a Malu estava gripada.

-À noite eu passo no seu apartamento – respondi. Ah, faça-me o favor!

-Mas...

-À noite eu passo lá!

Não sou idiota.

Cheguei lá, e a Renata veio com essa história ridícula de gripe, falando que depois que a gripe passou ela quis ficar mais um tempo pra ter certeza que a Malu estava curada, e aí eu tive de interromper.

-Faz nove meses que a Malu foi embora. É do Tommy?

-O que tem o Tom a ver com a gripe dela? – A Renata tem de ser a pior mentirosa do mundo, não é possível.

-Rê, você sabe perfeitamente que bebê não é feito com espirro. Só me diga se é do Tommy e, se for, o que diabos a Malu ainda está fazendo em Paris, se recusando a vir aqui, deixar que a gente vá lá, ou falar conosco?

-É, é do Tom. É um menino lindo, saudável, chama Victor – Renata se deu por vencida. – Ela não quer contar, não quer voltar, não quer falar, por isso você está proibida de dizer qualquer coisa, Kate! Ela tem as razões dela, razões insanas, sem cabimento, mas são as razões dela, então bico fechado.

Porra, tá de sacanagem!

Porque, como melhor amiga eterna, eu me achava no direito de estar muito magoada com essa história toda. Torci por essa menina feito uma louca. Planejamos aquela viagem no verão, achando que fôssemos lhe dar a alegria da vida dela, mesmo que ela estivesse fazendo greve de silêncio, até a Renata dizer que ela precisava de mais tempo. Demos. Estávamos dando tempo há quase um ano, mas tudo bem, não sei como essas coisas de reabilitação e ex-drogado funcionam, e se a Malu precisasse disso para ficar bem, então ela teria. Daí ela me arruma um filho, o pai conhecido e sem fazer ideia do que estava rolando, tinha a criança sozinha e era segredo? Segredo até pra mim?

-Na verdade, o Tom tinha mais o direito de saber que você, Kate – Renata falou. – E ele tem. Só que como e quando contar, quem tem de decidir é a Malu.

-E ele foi registrado em nome de quem?

-Pai desconhecido – Renata respondeu, contrariada.

-Mas ela não pode estar raciocinando!

-Eu também acho que não! Só que ela faz terapia, se parar de raciocinar, vai ser mandada pra um psiquiatra, e enquanto ele não me der um laudo dizendo que a Malu não raciocina e a gente tem de intervir, nós vamos deixa-la levar a vida como ela acha que tem de ser.

Puta que pariu, que tijolada na cabeça.

-Como ela está se virando? – Perguntei, tentando ser prática, mas estava difícil.

-Com dinheiro, ela tem uns alunos particulares e eu ajudo. Com o dia a dia, ela fez uma amiga no NA que dá muito suporte. Tô cuidando dela, Kate. Acho que ela está sendo uma mula empacada, mas está bem. Quando achar que ela não está, eu vou e a arranco de lá. Pode deixar, estou tomando conta.

-Você tem foto do Victor?

Renata tinha uma porrada, e estava toda boba, parecia que o filho era dela. Era um recém-nascido com cara de recém-nascido, e fiquei olhando para aquele bebê pensando puta merda, como um de nós já tem um desses, éramos bebês até muito pouco tempo atrás. E como o primeiro é da Malu e do Tommy, a história mais trágica de todas? E como, forças divinas que regem todo o universo, como assim o Tommy havia feito aquela criança e não tinha ideia que ela existia?!

E a verdade é que, apesar da coceira louca que me dá, não sei até que ponto é sensato interferir nisso. Se eu tivesse certeza do que eles sentem um pelo outro, procuraria o Tommy agora e foda-se se o psiquiatra não deu laudo e a gente não pode intervir. Só que passou muito tempo. Não tenho mais notícias da Malu além do "ela está bem" que a Renata solta, se bem que a outra frase preferida da Rê é "Não tem muita coisa acontecendo na vida da Malu, ela está vivendo um dia depois do outro", e enquanto isso a maluca estava com um filho do meu melhor amigo na barriga. E, quanto ao Tommy, ele está tocando as coisas. Quase não fala dela, mas não daquela forma doentia de quando a Malu teve a overdose. Ele não fala mais nela porque está seguindo em frente.

Então, em um dos meus telefonemas semanais pra mamãe, eu contei tudo, porque quando a Renata disse que não era para eu falar nada, ela com certeza não incluiu minha própria mãe no pacote, certo? Minha mãe resumiu com: "Essa história não está terminada. Deixe que ela siga o seu curso". Deixei. Mamãe é sábia pra cacete, nunca me deu um conselho ruim. A merda é que, cada vez que vejo o Tommy, a única coisa que me passa pela cabeça é que ele não sabe que, entre as bilhões de pessoas do planeta, uma delas é um filho seu.

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Esse POV é parte da Semana da Kate, que está acontecendo do dia 15 a 21 de junho, no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora