(2016) Tommy: O Fantasma da Ópera

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O telefone tocou oito horas da manhã de um domingo. Saí apalpando a mesinha de cabeceira, achei, ele escorregou, caiu na cama, eu aceitei a ligação e disse:

-...

-CONSEGUI O PÔNEI, CARALHO!

PORRA, O PÔNEI!

Sentei, peguei o celular e o coloquei na orelha.

-Ele já tá aí?

-Não, mas é o seguinte. Ele chega amanhã de manhã e fica no máximo duas horas porque tem um lance de não estressar o bicho e tal, então tudo tem de estar pronto hoje.

-Caralho, hoje?

-Hoje!

-Você tá em casa?

-Não, já tô no estúdio e tô te esperando.

Levantei e comecei a me vestir enquanto prendia o telefone com o ombro. Puta que pariu, o pônei!

-Falou com a Jade? Com a Ava? Com o Larry?

-Não, tô falando com você! Vou desligar pra ligar pra eles. Vem, caralho!

-Tô indo. Vai fazendo café também, que tô só o resto.

Estava o resto. Agora estava ligado em uma bateria de 440 volts. Caramba, o pônei!

Vou explicar uma coisa sobre mim, e espero não parecer um idiota enquanto faço isso. Tenho dois pais. Um deles é o meu pai biológico, cara sensacional, ponta firme até dizer chega, um coração inteiramente no lugar. Com quem eu não tenho assunto. Ele passou dezessete anos da minha vida me fazendo assistir a futebol, me fazendo brincar de luta, querendo conversar comigo sobre mulher e, depois que eu saí do armário, um ano sem saber como falar comigo. Dá a maior dó e tenho o maior respeito pelo meu pai porque ele tenta, ele só não sabe como agir, é um desconforto da porra. Acho que no fundo, por mais que eu esperasse essa atitude, foi uma puta decepção. Meu pai é bem grosso, mas ele curte umas coisas legais. Ok que ele só gosta de arte quando reconhece seu valor histórico, mas mesmo esse tesão dele por história é incrível. E cara, quem já o ouviu tocando Vivaldi no piano sabe que tem que haver alguma sensibilidade ali. Só que a gente sempre teve um relacionamento emperrado, sabe? Se eu precisasse de alguma coisa, sabia que podia contar com ele, mas nunca fomos muito além disso. É que ele sempre me tratou como uma pessoa que eu não sou e não sabe lidar com o Tommy de verdade.

Meu outro pai é o dindo.

Com isso não estou dizendo que o dindo seja melhor que o papai. Só que, por traços de personalidade e criação, por gostos e etc, nossa convivência sempre foi bem mais fácil. O dindo sempre tirou Londres (ou a Sardenha, ou Montevidéu, ou qualquer lugar que a gente estivesse) do lugar e transportou para um mundo Além da Imaginação. Ele montava fantasias para mim, e teve uma vez que eu era pequeno e cismei de ser roqueiro para homenagear a mamãe, e ele me maquiou como o Paul Stanley do Kiss (não lembrava disso, mas tem uma foto na sala pra provar). Em outra, estávamos passando férias na Sardenha e a Angie queria Kit Kat. Ele escondeu uma caixa em uma ilha, arrumou roupa de pirata pra todo mundo e fez um mapa do tesouro. Isso eu lembro bem sozinho, embora também haja fotos pra provar. Ele fazia a sonoplastia das histórias que nos contavam e foi ele que construiu a casa na árvore da casa da mamãe, junto com o tio Mick. Um dia a gente estava fazendo dever, e ele chegou cheio de latas de tinta e disse que íamos pintar a casa, e é por isso que ela é um troço cagado que a mamãe uma vez confessou que só não jogou fora porque o dindo cismou de colocar os "bebezinhos dela" para pintar, e depois ela acabou se acostumando. Mas esse é o tipo de coisa que te marca, sabe? Meus pais podem fazer uma pira no solstício com notas de dinheiro. Sério, eles têm muita grana. Mas são coisas desse tipo que você lembra com carinho. Não é à toa que, se o meu pai foi a última pessoa para quem contei que era gay, o dindo foi a primeira.

Desde cedo, eu e o Victor ajudamos o dindo com as fotos. O Victor porque curte, eu porque curto e quero fazer cenografia. Se entre mim e o papai rola um desconforto, triplique isso no caso do Victor. Sei lá qual é o problema dele. Mamãe diz que eu e Victor somos muito parecidos, mas só o que vejo em comum entre a gente é o fato de gostarmos de arte. Eu e minha prima Emily também gostamos, e ela parece muito mais minha irmã que ele, se bem que a Emily não conta, ela é a criatura mais doce que existe. Enfim, Victor ajuda como e quando pode, eu ajudo por aprendizado, profissão e porque acho o dindo simplesmente genial.

Saí do metrô, cheguei ao estúdio e o dindo estava sentado na porta, bebendo café.

-Você tá parecendo um camponês – Eu falei quando o vi. – Isso aqui é Hackney Central, não é Lugar Nenhum.

O dindo deu uma gargalhada.

-Tô incorporando o personagem dono de circo do século XVIII.

-Eles bebiam café na porta?

-Parece verossímil, não parece?

-Certeza que parece.

Olhei em volta, só então percebendo o problema:

-Como a gente vai fazer amanhã quando o pônei chegar?

-Já carregou um pônei?

-Como assim? No colo?

-Carrego a frente e você carrega a bunda, que não quero um pônei peidando na minha cara.

-Beleza. Não quero um pônei arrancando meu pau fora com uma dentada.

-Haha, eu tô tentando arrumar uma rampa pra ele. Pega lá um café pra você. Ficou bom, eu trouxe a receita.

É isso mesmo, o dindo segue receita pra fazer café.

Há uns dois meses a gente foi assistir a O Fantasma da Ópera e depois, enquanto devorámos um frango Tikka Massala e conversávamos sobre a peça, o dindo teve a ideia de fazer um ensaio sobre aberrações de circo do século XVIII, que seria um desenvolvimento do livro que ele fez há anos sobre todos os tipos de beleza.

-Porque pensa bem, Tommy. Hoje em dia, a gente sente pelo Erik muito mais que pelo Raoul, mas naquela época, se você era deformado, não tinha chance alguma na vida. No início dos anos 80, quando eu, imigrante, cabeludo e sem um puto no bolso, comecei a me tatuar, a aberração era eu até que resolveram que eu era famoso e tinha grana e valia a pena ser aceito. Agora o que você mais vê é moleque com o braço fechado de tatuagem, e tá tudo bem. Só que se você vê um aleijado pedindo dinheiro na rua, passa longe. Vão sempre existir as aberrações, e as pessoas irão sempre virar as costas para elas.

-Vamos fazer um ensaio de aberrações?

-Vamos fazer um ensaio de gente diferente com uma puta história para contar.

-Eu sou uma aberração! – Falei, empolgado. E sou mesmo! Mamãe tem duas grandes amigas que são gays, e tia Sue sempre diz que as coisas são bem mais fáceis para mim do que eram na época dela. São mesmo. Mas tem umas meninas na faculdade que vivem atrás de mim como se eu fosse o bichinho de estimação delas, sabe? Porque é maneiro e tá na moda ter um amigo gay. É tipo como se elas me aceitassem, mas só porque a minha diferença lhes traz algum status.

-E quem não é? – O dindo deu um sorriso.

Começamos então a planejar o circo.

Uma vez eu disse pro dindo que ele não precisava me pagar, que eu estava aprendendo, mas ele falou que na verdade era trabalho, era como um estágio remunerado e ele me pagaria assim mesmo. E ele paga bem, mas faria de graça do mesmo jeito, e olha que a minha vida é bem cheia. Eu estudo, trabalho com a Ava, tenho vida... enfim. Mas passo meu domingo arrumando o estúdio pra chegada do pônei, e passo feliz.

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Este é o último POV da Semana do Tommy. Amanhã teremos um novo personagem!


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora