(2012) Malu: Lindo e doce pra uns...

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Christina abriu a porta do carro pra gente e ajudou a Emily a sair. Amo muito a Christina, ainda mais por ela ter topado trabalhar no seu dia de folga, dia esse, aliás, que me pediu livre para ir ao médico para a consulta de mudança de sexo. Só que de repente a Rê se abateu na minha vida e tive de ligar para ela às pressas, e ela disse que não tinha problema, ela nos levaria ao centro de apoio, iria ao médico, eu pegaria um táxi para descascar as orelhas da Renata e ela me buscaria lá depois. Claro que ofereci para pagar como hora extra. Obviamente, ela aceitou. Esse lance de troca de sexo deve ser meio caro, e não sei se o sistema de saúde cobre.

-É aqui, dinda? - Emily perguntou, gotejando lindeza e doçura.

-Acho que sim, meu amor.

-Oba! - E saiu entrando e falando "Oi!" para todo mundo que encontrava pelo caminho.

Cara, impressionante como tudo com a Emily é fácil, lindo e doce, e a Renata torna difícil, feio e azedo. Emily é totalmente artística, o que não chega a ser surpreendente com toda a sua carga genética, e Eddie encontrou aulas de arte pra ela nessa ONG que veio super bem recomendada, não só por descobrirem novos Picassos, como pelo trabalho que fazem com crianças SD de uma maneira geral. Tudo acertado, combinado, Emily sem falar em outra coisa desde que visitou o espaço, o Eddie se enrolou com o trabalho e não podia leva-la. Cara, Eddie dar aquela decepção à Emily seria como enfiar uma tesoura cega no coração dele. E Emily decepcionada seria como uma tesoura cega no meu coração. Quem tem que resolver uma situação como essa? Claro, a mãe da criança. E tudo estava correndo muito bem até que eu, ser sagaz, resolvi ligar para ela para ter certeza que a Emily realmente não faltaria à aula.

-Malu, dia insano! Preciso encontrar coreanos daqui a vinte minutos.

-Por favor, me diga que você vai levar a Emily.

-Estou tentando, juro que estou tentando acomodar tudo, mas você sabe como são os coreanos.

-Rê! A Emily está contando com isso!

-Malu, o que eu posso fazer? Estou enrolada! Por que o Eddie pode se enrolar e eu não posso?

-Porque o Eddie se enrola e deixa de fazer alguma coisa com a Emily uma vez por década, você faz isso uma vez por dia! Você não pode frustrar a menina por causa de coreanos!

-São os coreanos que pagam a comida que boto na mesa da Emily! Com licença, preciso ir.

Filha da puta. É o Eddie que paga a comida que a Rê bota na mesa da Emily. E, como a Rê só bota mato na mesa, a comida não deve custar nem uma libra.

Foi aí que fiz um telefonema desesperado para a Christina. Ela não trocou a Emily por perder o pinto, e a amo muito por isso.

Mais tarde, levei a Emily para tomar sorvete. O mínimo que podia fazer para me vingar da Renata era encher a filha dela de açúcar. Quem sabe o fato distraísse a minha linda e doce afilhada e ela não comentasse com o Eddie que quem a levou ao grupo de apoio fui eu. Não que a Rê não merecesse o esporro que tomaria, mas não estava muito ansiosa para ver a cidade que adotei como minha explodir em chamas.

-Olha, dinda, que lindo! - Ela me mostrou a pintura que fez.

-É lindo, Emily! - E era! Era uma obra prima! Eu já estava me vendo sendo entrevistada em frente ao Museu de Arte Moderna, dizendo que levei a artista da mostra à sua primeira aula no centro de apoio.

-Vou dar pra mamãe - Ela falou, com a certeza que Renata ficaria tão maravilhada quanto eu.

-Ela vai adorar - Falei, não tão certa assim.

Não é que a Rê não ame a Emily. Ela ama, sim, e muito. Mas você olha pra Emily e vê uma linda adolescente de longos cabelos castanhos, os olhos verdes mais fantásticos do mundo e, como se já não fossem naturalmente bonitos, são cheios de pontinhos de luz, bochechas rosadas, o sorriso mais doce e permanente que ser humano algum já possuiu sobre a face da Terra, uma cabecinha cheia de ideias, sonhos, criatividade e arte, mãozinhas que estão sempre inventando e conversando, um corpinho pequenininho e cheiroso que eu até poderia botar no colo se não fosse pequenininha também. A Rê vê olhos puxados, dentes pequenos, dicção penosa, mãos que falam como se a Emily fosse surda, um corpinho gordinho e pequeno demais para quem tem pais tão altos, uma cabecinha que nunca vai poder entender o suficiente de matemática para se reunir com coreanos. Há treze anos, vejo Eddie se virar do avesso para que Emily se desenvolva e tenha a vida mais autônoma e feliz que puder. Há treze anos, vejo Renata brigando com ele, pois acha que Emily só terá alguma chance de sobreviver em sociedade se as pessoas ignorarem os sinais óbvios de que ela tem síndrome de Down. E é muito, muito triste perceber que a melhor mãe que você teve é a pior mãe do mundo para a própria filha. Sim, a pior, pois a mamãe ao menos era uma louca assumida. Rê não assume nem para ela mesma que não aceita a Emily, e disfarça tudo sob um teatrinho de normalidade, e espero sinceramente que o lindo e doce coraçãozinho da minha afilhada nunca se dê conta que tanta falta de atenção e impaciência não é o que se espera de uma mãe. Isso não é normal. O fato da Emily ser uma menina feliz, criativa e talentosa, é.

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Este POV faz parte da Semana da Malu, que acontece até dia 14/11 no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora