Todo ano, a Alex faz o Dave e o Josh descerem umas caixas de papelão enormes que ela guarda no sótão com a tranqueira que ela coletou o ano inteiro. O objetivo é que a gente pegue todo aquele lixo e transforme em presentes de natal, e nem agora, que já saímos de casa, a gente se livrou do fardo. Todo ano nós perguntamos a ela por que não podemos ser uma família normal que vai à loja, escolhe os presentes e paga por eles, e a Alex responde que presente de natal já feito não tem sentimento, que não conhecemos o vendedor do presente, não conhecemos o dono da fábrica do presente, não conhecemos o operário da fábrica do presente, aliás o coitado do operário da fábrica do presente ganha uma libra por presente, isso se não for um chinês ou um taiwanês que ganha meia libra pelo mês inteiro para fazer presentes, e está fazendo o presente com problema de dor nos calos e ódio do mundo e não podemos distribuir rancor no natal.
Ainda bem que temos o papai, que vai à loja e compra presente pra todo mundo com cartão de crédito.
Mas, ainda assim, nós temos que passar pelo mico de entregar os nossos. Teve um ano que tentamos fazer o Les Paul entregar pela gente, porque ele é pequeno e sem noção como toda criança, mas a Alex fez outro discurso que, de boa, estou com preguiça de repetir.
Tirando a vergonha, os natais são bem legais. Quando éramos pequenos, íamos para a casa dos meus avós em Elgin, na Escócia, mas desde que o vovô morreu nós ficamos em Londres mesmo. Depois foi a vovó Candice, avó da Alex, que morreu, e a Alex começou a surtar com seu problema de abandono e a madrinha resolveu juntar todo mundo em uma festa só, dizendo que, na velocidade com que nascem crianças, Londres pode ser assolada por uma peste que os natais terão sempre mais gente que no ano anterior. Assim, é uma multidão incrível. Tem os de sempre, basicamente os amigos do papai e da madrinha com os filhos, o que já dá umas vinte pessoas. E tem os que o papai chama de flutuantes, como os pais da tia Kate, que nem sempre vêm, e o Diego, meu meio-irmão que aparece, sem muita regularidade, desde que veio morar em Londres. Pelo menos não temos de fazer presentes artesanais para todo mundo. A Alex diz que presentes não comprados e sem rancor só precisam ser dados pros mais gente boa. A lista dos que merecem exclui a Tia Kate, o tio Vince e o padrinho, mas faço presente pra ele assim mesmo porque ele está na minha relação de pessoas legais. Quanto à tia Kate, aquela ali é uma bruxa. Em todas as minhas lembranças de infância, ou ela está gritando comigo e os meus irmãos, ou está gritando com a Alex por nossa causa.
Esse ano Dave não vai passar o natal com a gente porque viajou à trabalho com a orelha roxa de tanto a Alex torcer, e sobrou pro Josh, pro Les Paul e pra mim. Les Paul fez um boneco de batata, mas Alex vetou, disse que daqui a um tempo quem ganhar vai ter um presente podre e isso é mil vezes pior que presentear rancor, por isso a gente tem de se ater às regras do artesanato, que são:
· Não ser perecível;
· Não ser de fácil decomposição;
· Não ter o odor alterado;
· Ser biodegradável
-Isso não faz o menor sentido, Alex – Josh reclamou. – O que é perecível é de fácil decomposição e tem o odor alterável, e o que é biodegradável é perecível.
-Quem disse?
-A química.
-Legal! O que mais a química diz?
-Que o seu cérebro dá defeito.
-Duh, minha avó sempre dizia isso, e ela conhecia zero de química.
-Aqui – Mostrei o meu presente, que havia finalizado enquanto os dois discutiam química.
-Você fez uma caixa de sapato? – Josh perguntou.
-Claro que não! – Alex me defendeu. – Isso é... Obviamente é... Claramente é... O que é isso, Baby?
-É uma caixa de correio móvel. Onde quer que você vá, você leva com você e deixa na porta.
-Isso, e aí o carteiro não se confunde, porque ele sempre vai saber que é você! – Alex bateu palmas.
-Não existe só um carteiro no mundo! E ele não conhece todo mundo pela cara da caixa de correio!
-Segura o recalque porque eu pensei em um presente e você não, retardado! – Falei.
-Vou te mostrar o retardado, cara de mula manca.
-EI! CHEGA! CADÊ A HARMONIA DO NATAL?! NÃO POSSO COM ISSO! NÃO DOU CONTA!
-Vamos fazer a mentalização – Les Paul falou, e eu e Josh resmungamos:
-Puta que pariu, a mentalização, não.
Les Paul trouxe um CD New Age chato pra caralho da Alex, e a gente teve de sentar em posição de lótus para entrar no equilíbrio certo para fazer os presentes de natal, com o Josh cochichando pra mim:
-Culpa sua, idiota.
-Eu não fiz nada! Por que o papai não tem que participar dessas merdas?
-Porque o papai pensou primeiro em dizer que artesanato deixa os dentes dele moles e faz o cabelo dele cair.
-Sssssh! Olha a concentração! – Alex falou.
-Olha a concentração! – O chato pela-saco do Les Paul repetiu.
Fazer presente de lixo e mentalização é um saco, mas é o tipo de coisa que já virou parte da gente, sabe? Sei que o Dave não lamentou muito perder o ritual esse ano, mas isso é porque ele é um imbecil. Ele parece não fazer bem parte da família. E por mais que a minha seja de dar nos nervos e matar de vergonha, nós temos os nossos rituais e não tem como viver sem eles. Afinal, foi assim esse tempo todo.
Eu e Alex tentamos por anos fazer um peru, nunca conseguimos, mas dominamos o Frango Natalino.
O Josh torra a paciência de todo mundo e muda as histórias de natal para umas coisas escabrosas que me mataram de medo durante anos e a Alex adora.
O papai sempre termina meio bêbado e se declarando pra todo mundo.
A madrinha faz os melhores cookies do planeta.
A Emily canta o tempo inteiro, o que dá nos nervos e eu dispensava essa parte.
A insuportável da tia Kate fica dominando toda a conversa, e eu também dispensava essa parte.
Uma quantidade absurda de crianças e adolescentes fica correndo de um canto ao outro.
Les Paul e George fazem uma confusão dos infernos.
Victor me ignora, e eu também dispensava essa parte.
Eu e Tommy traficamos uma garrafa para o quintal e fazemos resoluções de ano novo. É que no réveillon não dá tempo, porque é lá que começamos a botar nossas resoluções em prática.
Não tem família melhor que a minha.
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Pedimos para a Baby nos contar os preparativos para conosco, com a Malu e com toda a turma, desejar a todos vocês um natal lindo! Muito obrigada pela leitura, apoio, estrelinhas, comentários e paciência!
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...