Entrei correndo, em cima da hora, no auditório. Não queria me atrasar, não estava com vontade de ouvir mais falação do que escuto normalmente, mas fiquei presa no trabalho, como sempre, depois tive de resolver mil problemas em casa. Minha vida não é exatamente fácil e gosto de dizer que, à essa altura, pretendia estar em uma posição confortável, ganhando bem sem trabalhar tanto, mas a verdade é que eu não sei se algum dia sonhei com aposentadoria. Nunca pensei em fazer um pé de meia para comprar uma casa de campo e me dedicar a algum hobby. Melhor ser sincera comigo mesma e admitir que meu hobby é ralar o couro.
Mas me atrasei por acidente. Juro.
Entrei, e imediatamente vi a Malu em pé me acenando de uma cadeira na segunda fileira. Vi que o Eddie estava sentado ao lado dela, mas nem se levantou para me cumprimentar. Pronto, íamos começar mais um round.
-Rê, eu tive de segurar sua cadeira na base da bolsada! – Malu falou, quando eu cheguei.
-Na verdade, tem uma avozinha na enfermaria nesse exato momento. Sei lá, acho que a prioridade devia ser quem não deixou de encontrar alemães pra ver a filha dançar – Eddie falou.
Acho que é campainha aquilo que toca antes dos rounds, não é? Pois bem, soou uma dessas.
-Eram japoneses e não deixei de ver nada. Estou aqui, o espetáculo ainda não começou, não é?
-Porra, Rê, você não é uma prima de terceiro grau que foi convidada pra dar uma olhada. Você é a mãe, caralho! A Emily tinha de fazer cabelo, maquiagem, tinha a roupa...
-Mas não tem problema, eu fui com ela, e foi super legal e eu e a Emily nos divertimos pra caramba – Malu se meteu da sua forma maníaca, querendo esfriar os ânimos.
-Cara, é show que a Emily tenha você pra fazer isso com ela, princesa. Mas esse era o papel da Rê!
Senti meu coração se comprimir de dor e me apeguei ao machismo do comentário.
-Mãe serve pra isso? Fazer cabelo e maquiagem e ensinar a cozinhar? E o que mais? Mostrar como se organiza os produtos de limpeza?
-Serve pra criar qualquer merda de laço nem que seja cabelo e maquiagem! Já que você não tem e nem procura ter nada em comum com a Emily, que seja isso, então!
Ainda bem que as luzes diminuíram naquele momento, pois meus olhos se encheram de lágrimas. Se o assunto é a Emily, Eddie é capaz de uma insensibilidade e uma crueldade atroz. Malu, para variar, ficou tentando botar panos quentes, dizendo que já ia começar, que estávamos lá pela Emily e não era hora nem lugar de bater boca, mas minha noite já havia sido irremediavelmente estragada.
A verdade é que eu e Emily vivemos em guerra desde o dia em que ela nasceu. Minto, desde a semana seguinte, quando começamos as terapias. E agravada com o passar do tempo, quando percebi que corria tanto e me esforçava tanto para deixa-la sempre um passo atrás das outras crianças. Nosso relacionamento é complicado, difícil, tortuoso. Deixei que Eddie ficasse por conta dela porque ele tem muito mais tempo que eu, porque o mundo dele gira ao redor dela, porque ele tem prazer em fazer isso, e sim, porque não sei lidar com ela. Não é que eu não queira, como ele parece colocar, eu simplesmente não consigo. Não sou um ser humano horrível e sem coração. Amo a minha filha e quero que ela seja muito feliz. Mas é terrível colocar uma pessoa no mundo e saber que ela tem poucas chances de ser uma pessoa realizada. E quando nem eu nem Eddie estivermos por perto, o que vai ser da Emily? Adoro estar afogada em trabalho e não ter de pensar sobre essas coisas. É covarde, eu sei, mas é só assim que eu consigo agir.
Anunciaram a turma da Emily e ela entrou no palco, com um collant roxo brilhante que mirou musical da Broadway e acertou alegoria de escola de samba, o cabelo preso em um coque e embaixo de uma boina tão discreta quanto a roupa, concentrada na sua coreografia e se movendo até com bastante graça. Ela podia ser tão linda! Com aquela pele e aqueles olhos, ela podia ser a menina mais bonita do mundo. Emily era o bebê mais maravilhoso que eu já vi, e não me conformo com a injustiça de uma garota daquelas ser vista na rua como só mais uma pessoa com síndrome de Down. Que ela não fosse tão baixinha e que, mesmo com todos os meus cuidados, não ficasse tão gordinha naquele collant. Emily foi completamente passada pra trás e enganada pela genética, e não suporto a ideia que podem ter sido os meus genes que fizeram isso com ela.
Porque veja bem, Emily poderia conquistar o mundo, mas jamais o fará por causa de um único cromossoma. A duras penas, ela é uma aluna mediana na escola, e não é como não se esforçasse. Ela se esforça, sim, e muito! Ela tem muitos interesses e vários hobbies, estava ali aguentando merda do Eddie exatamente pra prestigiar um deles, e ela estava dançando que era uma graça, mas só porque estava no meio de outras crianças com síndrome de Down. Ela jamais será uma bailarina. Para falar, é um tormento. Quando era pequena, o Eddie a colocou em um raio de curso de linguagem de sinais contra a minha vontade, e agora ela fala como se, ainda por cima, fosse surda, e eu não entendo uma palavra. Conclusão: Emily chega para me contar as suas histórias, eu fico perdida, acabo ficando impaciente porque... bom, porque era para tudo ser muito diferente... Emily fica triste, eu fico arrasada... Minha filha, droga! Consegui criar a filha do estrupício da minha irmã, mas não consigo me sentir à vontade perto da menina que coloquei no mundo!
O pior de tudo é a sensação, que na realidade é certeza, de estar sendo posta de lado. Minha irmã era a pior mãe do mundo e eu percebi que precisava me meter e assumir o cargo. E agora vejo a Malu fazendo a mesma coisa pela Emily e fico pensando em como a Cecília se irritava comigo. Estou sendo deixada para escanteio como se eu fosse a Cecília, e eu sou o extremo oposto dela! Primeiro veio o raio da linguagem de sinais, Malu fez o curso também para entender a Emily, e agora as duas têm longas conversas das quais eu não posso participar. Malu faz coisas pela Emily que eu nem sou informada a respeito! O próprio collant que parece uma alegoria, por exemplo. Ela chegou à minha casa dizendo que estava levando uma surra dos bordados e se eu poderia ajuda-la. Pelo tamanho, achei que fosse algo para a Lily, mas Lily é bem magrinha.
-É para a Emily? – Perguntei, sem nem saber como me sentir a respeito.
-É, para a apresentação de sábado.
Tudo bem que deveria ter passado pela minha cabeça que a Emily usaria uma roupa especial para se apresentar, mas por que ninguém me disse?! Eu costuro muito melhor que a Malu, daí ela ter vindo pedir a minha ajuda e, além do mais, a filha é minha!
-Por que não sei disso?
Malu ficou uns três segundos me olhando, com a boca aberta e o collant na mão. Conheço minha filha mais velha e sabia que qualquer coisa que dissesse seria uma desculpa das mais furadas.
-Fui levar a Emily ao ensaio naquele dia que você se enrolou, lembra, e me passaram a fantasia. Eu não te pedi porque sei que você é super ocupada, e eu no momento estou com tempo livre, não me custava nada. Devia ter falado antes, né? Desculpe.
Ok, foi uma boa explicação. O único problema é que não era real. O que acontece de verdade é que as pessoas não contam mais comigo no que diz respeito à minha filha.
E não, não consigo mudar isso.
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Este é o último POV da Semana da Renata. Domingo, 29 de novembro, será anunciado um novo personagem no grupo Realidades Paralelas da Mari
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...