(1999) Eddie: Emily

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Perguntei pra Rê se ela queria ficar lá em casa porque ela não parava de me ligar. Não me importava de atender, nem um pouco, aliás, mas andava sem tempo pois estava lançando um livro e culpado pra caramba porque, não havia o que eu dissesse, nada tirava as mesmas perguntas da cabeça dela. Perguntas essas, aliás, que só o médico tinha as respostas.

A Rê é muito engraçada, não de uma forma de dar risada, e sim de um jeito interessante, embora ela me faça rir também. Ela vestiu uma couraça para o mundo inteiro, quase como se estivesse com vergonha do que estava passando, e disse que não precisava ir pro meu apartamento e que estava tudo sob controle. Mas porra, era mesmo pra ter medo quando sua filha com síndrome de Down estava prestes a nascer. Eu sabia que eu estava com um medo do caralho. Não podia oferecer avós, tios nem primos àquela menina, uma garota que precisaria de uma porrada de cuidados, e beleza, a terapia que for a gente paga. O que depender de dinheiro, a gente paga. Mas existe um mundo além disso. Tem uma galera que me zoa por causa desse lance de grana, e cara, se eu tenho, eu gasto, e é incrível que, quanto mais eu gaste, menos me falte. E, se dinheiro tem tão pouca importância, é porque nada de realmente crucial depende dele.

Agora olha que fodido. É que já passei a maior parte dos últimos nove meses pensando nisso, e acho que vou passar um bom pedaço dos próximos anos também. Tudo o que eu podia, eu comprei, e nada disso chegou nem perto de substituir o que mais me fazia falta. E uma parte desse buraco estava chegando nesse bebê, o que era injusto pra caramba, aliás. Não queria colocar nenhum tipo de expectativa na minha filha que ainda nem tinha nascido, mas a verdade é que ela simbolizava algo que nunca tive e sempre desejei e, só por esse motivo, eu já era completamente apaixonado por ela.

Até aí, tranquilo. O problema é que decepcionei todas as mulheres que passaram pela minha vida, e nunca poderia desapontar aquela nem deixar que ela passasse também. Medo do caralho. Sempre identifiquei algo muito errado no meu pai (o que, aliás, não exigia muita perspicácia) e, como maior crítico dele, eu tinha obrigação de, no mínimo, acertar no ponto básico em que ele havia falhado: fazer a minha filha se sentir bem-vinda e me assegurar que ela soubesse que já é o centro da minha vida. Como conseguiria isso, aí eu não fazia ideia, pois essa era a parte que a terapia e o dinheiro não davam pra pagar.

Logo, quando a Rê me ligava às duas horas da manhã para perguntar se eu achava que ela falaria direito ou teria a voz esquisita, um bebê que ainda nem tinha nascido e que possuía um ano pela frente para dizer suas primeiras palavras, não dava para ficar puto. Não dava nem pra levar a sério. Eu dava risada.

Aí fui buscar a Rê para o churrasco de aniversário do Tom, ela passou o caminho inteiro avaliando decoração dos quartos e casos que havia lido e que não era possível que o bebê não ficasse praticamente normal, nenhum pai de criança SD havia feito metade do que fizemos antes mesmo do nascimento, e resolvi perguntar:

-O que seria praticamente normal? E praticamente anormal?

-Eu quero que ela tenha o mínimo de dificuldades possível. Você não?

-Claro.

-Então.

-"Praticamente normal" significa "com menos dificuldades"?

-Isso.

-Ah, então tá bom.

-E o que você acha? Ela vai ser praticamente normal?

-Praticamente normal, eu aceito. Se nascer normal, vou pedir um exame de DNA que é filha de outro – eu dei uma gargalhada, mas a Rê não estava no estado de espírito do senso de humor.

-Eddie, eu vou explodir! Meus sapatos não me servem mais! Sabe quantas vezes eu acordei essa noite? Sabe? Sete! Quantas vezes você acordou?

-Nen... – Comecei, com medo.

-Nenhuma! Nenhuma! E por que?

-Porque... – Porra, sei lá porque. – Porque eu dormi tarde? Tava cansado?

-PORQUE VOCÊ NÃO TEM UM BEBÊ GIGANTE DENTRO DE VOCÊ! AGORA ME DIGA, EDDIE, ELA VAI NASCER NORMAL?

-V... vai. Super normal.

-Era só isso o que eu queria saber.

Caralho.

O churrasco estava bem legal. Adoro viajar, mas puta que pariu, amo voltar pra casa. A galera estava toda lá, meu afilhado estava enorme e uma figura, eu e Malu zoando a Kate, que estava puta pois achava que a Malu estava contagiando todo mundo com maternidade. Mas cara, isso era legal pra caramba e, ao mesmo tempo, diferente. Foi a primeira vez que eu não me vi como o tiozão solteiro da turma, terminando o dia, normalmente não sozinho, mas frequentemente com alguém que dava tanto a mínima pra mim quanto eu dava pra ela. Não que não fosse ser exatamente esse o caso aquele dia, mas a minha vez estava chegando.

Minha vez não demorou nem mais meia hora. A bolsa da Rê estourou durante uma briga sem sentido do Tom com o Mike Amos, e de repente toda a minha calma e bom humor foram pra puta que pariu. Parei no mesmo lugar e pensei que aquela era a hora de ser gente grande e ir em frente com o que eu tinha me preparado meses pra fazer, mas eu não conseguia sair do lugar. Não conseguia nem lembrar do óbvio próximo passo, que era levar a Rê para o hospital. No fim, fomos todos salvos pela Malu, como sempre. Aquela menina baixinha com rosto de criança que começou a correr pelo meio de todo mundo dando ordens, e, enquanto falava com o médico ao celular, me puxou e mandou:

-Leve a Renata para o hospital! Agora!

Eu estava tão lesado que só conseguia pensar que ainda era muito cedo, o que me lembrou que não tinha nada pronto.

-Mas... Mas... a mala!

-Eu pego a mala e encontro vocês lá. Agora, Eddie! – Ela berrou, e foi o que bastou para colocar as minhas engrenagens em andamento novamente.

Emily nasceu às 8.27 da noite do dia 26 de junho de 1999. A primeira coisa que eu reparei quando a peguei no colo foi que ela tinha peso. A segunda, que ela se mexia. A terceira, que ela respirava. A quarta, que eu a havia feito. E a quinta é que ela dificilmente encontraria alguém que a amasse tanto quanto eu. E então ela olhou para mim. Com os meus olhos, o que por si só não seria nada demais, mas os meus olhos são os da minha mãe, como prova a única foto dela que eu tenho e que eu já vi até hoje.

-Ela não parece normal? – Rê falou.

Normal? Nada tão perfeito pode ser normal.

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Esse POV faz parte da Semana do Eddie, que acontece até dia 16/8 no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora