(2001) Mick: Agora vai

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Levei a Andrea comigo porque queria que ela ficasse com as crianças para eu ter uma conversa a sós com a Singe. Essa porra desse último ano inteiro eu tô tateando no escuro, pensando que merda eu tô fazendo, como tiro a gente dessa enrascada. Cara, drogas não são coisa rara no meu meio. Quase perdi a Malu e o Eddie, meus dois melhores amigos, pra elas. Isso pra falar dos mais próximos, porque na verdade vi um monte de gente morrer e outro monte chegar perto. E, por outro lado, vi uma cabeçada que usa desde sempre e não faz nem cócegas. Mas é diferente quando entra na sua família, quando tá ameaçando levar a mãe dos seus filhos e a única mulher que você amou de verdade a vida inteira. Pros sobreviventes, bato palmas, tiro o meu chapéu e pergunto cadê a porra da linha divisória, porque não sei como agir. A linha da Malu e do Eddie é o medo, medo do que eles podem fazer com os outros. Não faço ideia qual a linha da Singe. Sei nem como ela se meteu nessa merda pra início de conversa e, apesar do que a piranha da Claire diz, só posso ter fé que eu não fui o motivo.

Já ouvi uma porrada de asneira também. Entre elas, que a Singe não era mais problema meu. Como se uma pessoa que colocou três dos seus filhos no mundo algum dia pudesse se desligar de você. E não é só isso, sabe? Caralho, a Singe está sozinha! A mãe dela não faz porra nenhuma, me esperou voltar da turnê pra larga-la nas minhas mãos. Os amigos, a Singe mesma deu um jeito de botar todo mundo pra correr. Agora me diz, vou virar as costas como? Não é problema meu como?

Até porque, tudo o que eu queria era a Singe de antes.

Então como o problema é meu, eu é que fui conversar com o médico quando terminaram as semanas regulamentares do tratamento. Ele falou que a Singe estava pronta pra voltar pra casa.

-Tem certeza? Ela tá meio estranha – Falei, na dúvida, porque porra, não tenho certeza de mais nada. Eu estou há um tempão incomodado com a diferença da Singe, e a sensação não melhorou quando a Malu esteve com ela e disse que ela estava com um fusível queimado. Sei lá que porra isso quer dizer, mas não pode ser coisa boa. O médico disse que a depressão é normal, que ela deve continuar fazendo terapia e ir às reuniões do NA, mas que o acompanhamento pode ser feito fora da clínica e não há necessidade de ela continuar internada, que vai ser bom estar com a família e tal. Cara, família sempre foi importante pra cacete pra Singe, então achei que ele devia estar certo.

No domingo, levei a Andrea e as crianças. Bizarro, muito bizarro. Singe conversa com eles, mas é esquisito, sabe? É superficial, é estranho pra caramba. Não é nem de longe como antigamente. Parece mais que ela está encenando do que realmente sentindo alguma coisa. Daí eu pedi que Andrea os levasse e me esperasse no carro e puxei uma cadeira para me sentar em frente a ela. Porra, não sei bem como essas coisas funcionam, mas esperava que ela estivesse felizona, numa expectativa danada. Pra lhe dar crédito, Singe estava sorrindo, mas eu conheço aquele sorriso há tempo demais para não saber que havia algo de muito errado com ele.

-Animada com sexta-feira? – Perguntei, meio sem jeito.

-Ah, sim. Bastante – Ela respondeu. A primeira coisa que pensei com a forma que ela falou aquilo foi que, se o médico me garantiu que ela estava pronta, então era porque deveria estar. Mas juro por Deus que, se ela não estivesse internada numa clínica, ia achar que tava drogada.

-Então, a gente precisa conversar certas coisas. Você ficar sozinha na sua casa não foi muito legal, né?

Porra, ela concordou sem nenhuma reação além daquele sorriso dela. Tipo, podia ter mostrado medo, desconforto, tristeza, até alegria, qualquer merda de reação. Me toquei qual era o problema. Ela sorria só com a boca, mas seus olhos estavam vazios.

-Você não quer ficar lá em casa? Sei lá, até passar esse início, você se sentir mais firme.

Eu estava meio andando em gelo fino, um pouco nervoso, aliás. Não só por causa do sorriso esquisito. É que, da última vez que a gente falou em voltar, ela me deu um fora. Não era isso que tava propondo agora, pelo menos ainda não. Se a Singe realmente melhorasse, se ela estivesse bem, aí certeza que seria o meu próximo passo. Sinto falta dela. De quem ela era quando a gente se conheceu. E cara, essa história da dependência dela foi uma bigorna que caiu na nossa cabeça, mas explica muita coisa, saca? De repente foi isso que deu errado, quem sabe com esse problema para trás a gente é capaz de seguir adiante. Não vou jogar a culpa toda em cima dela, eu fui um filho da puta várias vezes, mas tô disposto a consertar a minha parte. Se a parte dela também for consertada, a gente pode voltar ao que era antes.

Só que, primeiro, eu precisava mantê-la por perto e ter certeza que ia ficar tudo bem de verdade. Da primeira vez eu confiei na inútil da Claire, achei que internação funcionasse como mágica, e deu no que deu. Era muito importante que ela fosse pra minha casa.

-Posso pegar as suas coisas, então? Eu peço pra Andrea dar uma olhada nas suas gavetas, se você não se importar. Ou, se você quiser, a gente vai lá no final de semana.

-O que eu tenho aqui é suficiente – Ela respondeu.

-Tem mais uma coisa... – Malu ia me matar. A ideia era que a festa fosse surpresa, mas do jeito que a Singe andou brigando com todo mundo, era sempre bom testar. – Capaz do pessoal querer te ver. Tem alguém que você preferia... sei lá... não falar?

O sorriso da Singe deu uma tremida. Foi a maior reação que vi nela há muito tempo.

-Não, eu... eu acho que gostaria de ver todo mundo – Ela falou, sem a menor firmeza.

-Singe, se você não tiver certeza, não tem importância. A gente faz da forma que for melhor pra você – Peguei sua mão em um impulso, mas ela deixou. Aceitou com naturalidade. Pode ser piração da minha cabeça, mas achei que estava fazendo algum progresso.

-Está bom pra mim, Mick. – Ela respondeu. – Obrigada. E me desculpe.

Porra...

-Não tem o que desculpar. Eu tenho uma lista de coisas pelas quais pedir desculpa também...

-Não, não tem, não. Pra mim, você não tem de pedir desculpa de nada.

Exatamente naquele instante, o horário de visita acabou. Puta hora infeliz. Senti que a gente tava perto de verdade de alguma coisa, sabe? De ficar zerado. E esse é o ponto crucial entre a gente, zerar as merdas todas e seguir daí. E quando essa hora chegar, e parece que ela tá perto, eu sei que finalmente vou ter a minha família de volta.

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Esse é o primeiro POV da semana do Mick, que vai até dia 17 de dezembro no grupo Realidades Paralelas da Mari



O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora