Passado o susto, o choro e o desespero, meus pais resolveram apressar as coisas para que ao menos o casamento fosse realizado antes que a minha barriga ficasse muito visível. Segundo a lógica deles, em seguida eu voltaria para Nova York, só viria a Saint-Louis de visita, e jamais ocorreria aos vizinhos e ao resto da família fazer as contas e ver que casei grávida. Assim, eu e Victor nos casamos em março, na minha cidade natal. O primeiro contato das nossas famílias já foi tenso, pois meus pais queriam uma data que facilitasse a presença da minha avó, mas esta batia com a turnê dos pais do Victor.
-É o casamento do filho deles! – Minha mãe falou, sem entender. – Eles não podem adiar um pouco?
-Três shows com lotação esgotada para milhares de pessoas? Não é mais fácil a vovó vir em outra data? – Argumentei.
-O que eles são? Adolescentes? – Meu pai reclamou.
Entendo os meus pais. Não concordo, mas entendo, pois para eles é difícil acreditar que músicos famosos, principalmente de rock, sejam pais de família. Quando o são, nas suas cabeças, seus filhos são largados por aí e desenvolvem todo tipo de problemas e vícios enquanto seus pais se drogam, fazem sexo com Deus e o mundo e pegam toda sorte de doenças venéreas. É o estereótipo, e somos vítimas dele com mais frequência do que acreditamos. Quando os convidados do Victor chegaram para o casamento, reservando o hotel mais caro da cidade, causando um rebuliço e chamando a atenção, eu soube exatamente o que meus pais sentiam. Era a primeira vez que os via fora de seu lugar de origem, da toca do coelho da Alice que era o Lindo Resort. Com certeza, em Los Angeles eles passariam despercebidos. Na minha terra, eles eram, no mínimo, exóticos, e carregavam atrás fotógrafos e jornalistas, transformando uma cerimônia pequena e discreta automaticamente no evento do ano. Minhas amigas ficaram histéricas. A vovó também, ainda que nunca tivesse ouvido falar deles.
Os pais do Victor se ofereceram para pagar pelo casamento, mas o meu pai decidiu que ele era perfeitamente capaz de seguir a tradição e arcar com os custos de casar a única filha, mesmo que fosse às pressas e, após o que foi gasto com a minha faculdade, eu o ter visto virar algumas noites fazendo contas. De qualquer forma, era uma cerimônia simples na igreja e uma festa na casa deles mesmos. Malu nos deu as passagens e as chaves da sua casa em Montevidéu para a lua de mel, para a qual só iríamos nas férias de primavera.
Eu já estava pronta, minha mãe e minhas primas e damas de honra chorando no quarto quando me viram de vestido de noiva, e ouvimos umas batidas na porta. Minha prima Mary foi espiar quem era. Era a Malu.
Fiquei surpresa, pois a ideia era que a família do Victor nos encontrasse na igreja. Ela já estava pronta e disse que queria trocar umas palavras comigo antes da cerimônia. Fiquei sem saber o que esperar. Meu único contato com a Malu havia sido na nossa ida a Londres para o natal, e sabia pouco a seu respeito além do fato de ela falar muito e alto, comandar a cozinha como se fosse chefe de um bandejão, ser uma artista famosa e muito conceituada, além das histórias, a maioria de trapalhadas incríveis, que o Victor havia me contado. De resto, a viagem havia sido passeios turísticos, entra e sai de uma família enorme, proibição de que eu e Victor nos tocássemos, muito menos que fizéssemos sexo, e o desmaio da Malu quando soube que eu estava grávida.
Minha família deu licença e ela entrou no quarto. Ela é bem jovem, e além disso está bastante em forma. Aliás, incrivelmente em forma depois de todos os filhos que teve. Estava com o cabelo preso em um penteado elaborado, bem maquiada como sempre, um vestido longo e elegante que deixava à mostra algumas das suas inúmeras tatuagens e, mesmo com saltos muito altos, ainda ficava mais baixa que eu. O que não significava que me intimidasse menos.
-Você está linda – Ela sorriu com simpatia. – Acho que eu te devia as boas-vindas à família. E, mais importante que ser uma Lewknor, você será uma Gonzaga. Sabe o que isso significa, certo?
-Hum... – Fiquei na dúvida do que responder. Não queria ofendê-la, mas não fazia ideia do que seria me tornar uma Gonzaga, até porque não havia decidido se mudaria meu sobrenome e, caso o fizesse, certamente acrescentaria o "Lewknor", como reza a tradição, e não o nome da mãe do Victor. – Desculpe, mas, na realidade, eu não sei.
-Ah, várias coisas sensacionais! Estávamos em extinção, mas isso já vem sendo revertido. Morremos cedo também, mas não fique preocupada, acho que isso só acontece com os Gonzagas de sangue e torço para que tudo não passe de uma coincidência, já que botei um monte de bebês Gonzagas no mundo.
Acho que eu parecia bem perdida, pois ela resolveu se explicar:
-O que importa mais que a alta mortalidade é que Gonzagas se apoiam. São famosos por não baterem muito bem, mas ninguém precisa de normalidade quando se tem o apoio de um Gonzaga. A gente vive em casas enormes para acomodar a família inteira e, quando chega mais gente, a gente constrói lofts. Às vezes tiramos as pessoas do sério, é provável que você faça isso de vez em quando, porque tem muito Lewknor no Victor. Mas bem no fundo ele também tem um lindo coraçãozinho Gonzaga, e você vai descobrir que está entrando na melhor família do mundo. Sem falsa modéstia. É que não sou boa em muitas coisas, mas como matriarca eu sou, isso não há como negar. Ele não é bem-criado?
-Quem? – Perguntei, sem ideia de quem ela se referia.
-O Victor!
-Ah... muito.
-E fique tranquila, combinamos que ele vai comer mais legumes. Você come também, certo? Legumes são superimportantes, principalmente durante a gravidez.
-Como, sim.
A verdade é que como, mas responderia que "sim" mesmo que me alimentasse somente de fast food.
-Também tem o fato do Hemisfério Norte ser mais prático e autocentrado, mas nós, Gonzagas, somos latinos e estamos acostumados a alimentar um monte de gente. Não que vocês não sejam solidários nem filantrópicos e tal, mas você nunca vai ficar sozinha, nem que queira.
Fiquei na dúvida se ela estava me insultando ou chamando o meu povo de egoísta, mas preferi crer que ela não entraria no meu quarto pouco antes do meu casamento para me ofender e que estava bem-intencionada.
-Obrigada, não me sinto sozinha.
-Nem vai ficar. Sei que vai ser difícil criar o bebê e terminar a faculdade, mas conte sempre conosco. Somos Gonzagas. Você é uma de nós. Bom, seja bem-vinda à família.
Seus olhos estavam marejados e ela me abraçou, o que eu achei muito bacana. Com todas as histórias horríveis de sogras, fiquei feliz que a minha discursasse e se enrolasse tanto para que eu me sentisse bem. Ela disse que nos veríamos daqui a pouco na igreja, eu agradeci mais uma vez e voltei para o espelho para me admirar, pois ainda não conseguia crer que estava mesmo me casando. Ouvi seus passos irregulares em direção a porta, já que Malu puxa levemente a perna direita e suas passadas são inconfundíveis. Mas não ouvi a porta abrir e nem se fechar. Me virei, e ela estava parada, me olhando. E então ela disse, séria:
-Só para lembrar, você sabe que o Victor é o meu filho mais velho, não? Que vivi um ano com ele como imigrante ilegal e o amamentava nas reuniões dos narcóticos anônimos? Que eu deixava de comer para comprar suas fraldas? Que durante a Crise da Água de 89 eu tomava banho frio para que não lhe faltasse nada? Que eu fui ao inferno e voltei um milhão de vezes para fazê-lo feliz? Isso também é o que mulheres Gonzagas fazem.
-Quero fazê-lo feliz – respondi, agora um pouco trêmula e completamente intimidada.
-Não queira. Faça.
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O Lado Escuro da Lua
RomansaEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...