-Você comeu merda? – Vince arregalou os olhos de espanto.
-Tá, não devia ter prometido, mas prometi e não volto atrás – Me defendi. Vince é meu amigo desde a quinta série e, nesse tempo todo, me perguntou se eu comi merda duas vezes. A primeira vez, tiveram de apartar a gente. Essa foi a segunda e eu fiquei me justificando. – Porra, não tô feliz de pagar por essa porcaria dessa passagem...
-Claro! Você vai tirar dinheiro do próprio bolso pra mandar o Victor pra ficar uma semana com o francês! O cara que foi casado com a sua mulher? Que tem o nome nos documentos do seu filho? Que tá sempre arrumando um jeito de foder contigo? Ele não levou uma grana sua porque você quebrou o queixo dele? Ele que pague a passagem com ela!
-Eu sei, caralho! Não é o francês e nem o dinheiro! É um ponto que eu tô tentando provar. É um gesto simbólico, cacete!
-Você comeu mesmo merda.
Terceira vez. Terceira vez na história que o filho da puta me dizia aquilo. O que me deixa mais puto... Ah, porra, tem tanta coisa me deixando puto nessa conversa! Uma delas é que eu não contei pro Vince pra pedir opinião, porque eu sei que tô certo. Dizer que daria a passagem foi uma estupidez, mas eu tava furioso com essa história da Suíça, e nisso eu tenho razão. Quando a raiva chega nesse nível, eu reajo. Reagi. Prometi a merda da passagem. Isso foi ruim, mas tava certo no sentimento, e não teria chegado a esse ponto se a Malu tivesse me consultado antes de acertar as coisas com o Mick.
-E se ela se esqueceu mesmo? Já pensou nisso? – Vince perguntou.
-Se esqueceu de um pacote de três pessoas pra Suíça?! Primeiro, a Malu não esquece nada. Segundo, a Malu não esquece nada que tenha a ver com aqueles moleques.
-Sei lá, as coisas estão meio confusas agora, né? Tem a bebê e tal. E cara, ela tá na banda da Kay, e pelo que eu vejo a Kay tá ralando pra caramba! Ela deve estar ralando junto.
Porra, o que mais tem é gente ralando.
É uma merda, viu? É um caralho. Porque não era pra ser assim. Não foi assim com os meus pais, não é assim com ninguém que eu conheça. Você acha que vai crescer, vai trabalhar, vai casar, vai ter filhos e pelo menos esse aspecto da sua vida vai ser calmo, mas é uma confusão atrás da outra. E o mais bizarro é que eu nunca quis essas coisas. Meus amigos falavam em casamento e eu era o primeiro a zoar, até que aconteceu comigo. E eles estão aí, com a vida toda organizada, e cacete, parece tão fácil. Olhando pra eles, parece fácil pra caralho! Até o Mick, com toda a merda que passou, parece estar sempre no comando da situação. E sempre que estou comandando alguma coisa, recebo uma puxada de tapete. Passei um tempão sendo responsável por mim, agora tenho que ser responsável por cinco e não sei como agir, caralho!
-O seu erro tá exatamente aí – Vince disse. - Vocês dois são responsáveis por quatro, não é você responsável por todo mundo.
-Fácil falar, né? Você e Kay só são responsáveis por um canil. E a Kay é muito diferente da Malu.
-Cara, qual a diferença? Sou casado com a Kay, você é casado com a Malu. A gente tem conta pra pagar do mesmo jeito! E de boa, o que se gasta em veterinário naquela casa dava pra ter mandado uns dez pra faculdade.
Cara, que puta frustração. É difícil explicar pra ele, sabe? Porque a Kay sempre foi a Kay. Desde o início, desde que a gente foi apresentado a ela, ela não mudou. É a mesma garota louca de pedra, escandalosa pra burro, boa menina até o último fio de cabelo e ambiciosa pra caralho. Vince e Kay começaram a namorar, foram morar juntos, se casaram, e ele sabia exatamente onde estava pisando. A Malu, não, ela muda todo mês. Comecei a namorar uma santinha, terminei com uma louca, casei com uma dona de casa, agora vivo com uma guitarrista que sai pagando viagens à Suíça e não deixou o Victor me pedir uma passagem pra Paris como se eu fosse um merda e não pudesse sustentar a minha família. Topei aquele lance anos 50 lá que ela vive falando? Topei, e porra, qualquer um que me conheceu por cinco minutos antes dela entrar na minha vida sabe que isso é algo que eu nunca faria por ninguém! Eu até me mudei da cidade, cara! Ralo feito um filho da puta, sou o melhor pai para aquelas crianças, e aí ela vem e muda tudo! De repente não quer mais casa, não quer mais a família nuclear depois de anos batendo nessa tecla! Sai gastando uma grana danada sozinha, me diminuindo, e o cretino sou eu? O vilão sou eu? Não tenho motivo pra ficar puto?
O único arrependimento que eu tenho é pagar pro Victor ver o velho. E ainda assim, mais pelo velho do que por ter passado por cima de uma ordem da Malu. A gente tinha de ter decidido isso junto, caralho. Ela quis dizer "não" sozinha, então eu digo "sim" sozinho. E ela pode falar que foi birra, e de repente até foi mesmo. Mas porra, se não quer que eu fique puto, então não me emputeça.
-E como estão as coisas entre vocês? – Vince perguntou.
-Uma merda.
-Não me admira.
-Mas tá acontecendo alguma coisa. Ela não me pediu desculpas.
-Você pediu?
-Vou pedir por quê, caralho? Tô aqui falando há horas e você não escutou nada?
-Por comprar a passagem. Sem essa palhaçada de gesto simbólico, vai! E o que você acha que tá acontecendo?
-Não sei, mas alguma coisa, tá. A Malu sempre acaba concordando comigo. A gente pensa junto, sabe? Ela dá as surtadas, eu trago de volta. Ela não tá mais voltando.
-Você é pai da Malu agora?
-Porra, não é isso o que eu quero dizer!
Quando nem seu melhor amigo te entende mais, alguma coisa definitivamente está acontecendo. Mas tá diferente. Começou com a história da aliança, ela não cedeu, mas eu entendo, pisei na bola e perdi a aliança e a Malu é toda romântica e tal e dá muita importância a essas coisas. Mas essa das passagens eu seria até capaz de perdoar se ela pedisse desculpas e nunca mais fizesse uma merda dessas. Ela não está fazendo isso. Ela não consegue nem ver o próprio erro! Ela tá mudando de novo e agora vai cismar que quer algo diferente e o otário aqui vai ter de se virar em mil pra arrumar.
E o único erro que eu cometi nessa história foi comprar essa merda de papo de família nuclear.
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Este é o último POV da Semana do Tom. Novo personagem no domingo!
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...