(1986) Renata: "Mentir para me livrar de enrascadas está no meu sangue"

102 24 2
                                    

Como isso é ridículo!

Não, não é. É deprimente.

Liguei para o hotel, a única referência que eu tenho, sem ter ideia de quem deveria chamar. Para melhorar, a recepcionista era uma cavala batizada e tinha um inglês pavoroso. Pedi para chamar a Malu ou a Kate, ela respondeu que não tinha ninguém lá com esse nome e bateu o telefone na minha cara. Liguei novamente, pedi para chamar Gigi ou Singe. Meia hora para fazê-la entender o nome das duas, bateu o telefone novamente. Liguei a terceira vez.

-Olha aqui, vadia, eu preciso falar urgentemente com alguém que não faço ideia quem seja, então dá para você parar de desligar, sua vagabunda, que quem está pagando a ligação sou eu e não você?

Bateu o telefone.

Jesus Cristo. Ainda bem que não é caso de vida ou morte, ou eu ia morrer estrebuchando antes de conseguir falar com a Malu. O problema é que talvez seja vida ou morte mesmo e, nesse caso, Malu estrebuchará junto comigo.

Fui até o cubículo ao lado e pedi à Donna, que trabalha comigo, para ligar no meu lugar. A putinha do hotel me odiava, já conhecia a minha voz e era capaz de desligar assim que eu dissesse alô. Já que as meninas estavam aparentemente eliminadas como hóspedes, dei os nomes dos meninos. Donna ligou, e dali a pouco me deu o telefone, cochichando:

-Vão passar pro quarto de um tal de Eddie.

-Graças a Deus! – Gritei e vi um monte de cabeças se virando para mim, mas ah, dane-se. Eddie atendeu, disse que a Malu estava no camping, mas que ele ia lá pedir a ela que me ligasse. Sim, iria imediatamente. Ok, ele entendeu que era urgente, tá tudo bem? – Tá, Eddie, mas vá agora, por favor!

A raiva que eu tenho da Cecília é proporcional à vergonha que eu tenho de mim mesma. Pelo amor de Deus, vinte e oito anos na cara, morando há anos sozinha e em outro continente, quase bem sucedida, totalmente independente, e quando o telefone tocou e a idiota da minha irmã disse que estava no Heathrow, eu tremi. A louca despencou para cá sem nem me avisar primeiro, ligou já do aeroporto me mandando, isso mesmo, me mandando ir busca-la. E o que eu fiz? Fui. E podia muito bem dizer que a Malu viajou mesmo, fui eu que deixei, que eu só a estava incentivando a ser uma pessoa normal, que as aberrações não eram os pais que deixavam os filhos quase adultos saírem com os amigos, era a Cecilia. Fiz isso? Claro que não. E o pior é que fico tentando me convencer que agi em benefício da própria Malu pois, afinal de contas, ela é menor de idade, e se Cecilia nos odiasse ela poderia muito bem enfiá-la em um avião de volta para o Brasil, mas a verdade é que eu estava era com medo da Cecilia mesmo. Pedi para sair mais cedo do trabalho (é, também fiz isso), fui tremendo como vara verde até o Heathrow pensando em todo tipo de história, e quando cheguei lá só possuía um roteiro muito mal alinhavado.

Encontrei a Cecília em pé no desembarque. A mulher é tão louca e tensa que não devia ter se sentado desde que me ligou. Alguém acha que me cumprimentou? Não! O que disse assim que me aproximei foi:

-Que história é essa de intercâmbio cultural?

Meu senhor. Um telefonema daria cabo perfeitamente da pergunta, mas ela veio até Londres para fazê-la a mim.

-Cecilia, não dava tempo de te consultar – respondi, com muita segurança. Por fora. Internamente, eu ainda estava tremendo. A sorte é que sou sua irmã há quase três décadas e estou bastante treinada em disfarçar o asco e o pavor.

-Quanto tempo se leva para dar um telefonema? Meses?

-Minutos, mas havia um formulário que você teria que preencher, enviar de volta, isso levaria tempo demais, era uma excursão inofensiva e a Ma...ria de Lourdes estava louca para ir. Ah, Cecilia, é um passeio só de meninas por igrejas medievais francesas! Como você poderia se opor?

-Eu decido a que eu me oponho! Eu decido o que a minha filha pode fazer! Não você! – Ela poderia estar gritando, mas a altura da sua voz não se alterou. Aliás, não se altera nunca. No entanto, eu sentia como se ela estivesse aos berros. Não existe mulher mais estranha que a minha irmã. Ela ainda não tem nem quarenta anos e parecia a pessoa mais velha do aeroporto, pois ainda conversávamos em pé, em frente ao portão de desembarque. – E por que uma escola de música mista organizaria uma excursão só de meninas a igrejas medievais?

-Para estudar música sacra, ora bolas! O alojamento é em um convento, só podiam ir meninas e professoras mulheres.

Sou filha de pais velhos e tenho uma irmã anciã. Mentir para me livrar de enrascadas já está no meu sangue, e até eu fiquei perplexa em ver como, mesmo após todos esses anos, eu ainda estou afiada.

-Vamos à escola que eu quero conversar com o diretor.

-Ok, deixamos as suas malas em casa e eu ligo para marcar uma hora para o mais breve possível.

-Vamos agora.

-Não sei se eles atendem sem hora marcada.

-Agora!

Na nossa adolescência, não era comum fazermos curso de inglês no Brasil, a língua da moda das mocinhas de família era o francês, que a minha irmã fala muito bem. Já eu matava as aulas da Aliança Francesa para ir à praia. O que significa que a Cecília não fala uma palavra de inglês e eu aprendi na marra quando vim para cá, pois, se minha mãe me houvesse obrigado a fazer um curso, eu também mataria as aulas. Com isso, eu a levei até a escola e fomos recebidas pelo coordenador do curso da Malu depois que eu disse que a mãe de uma aluna queria vê-lo e era urgente, e para ele falei que a minha irmã havia despencado do Brasil só para saber como andava o desempenho da Malu na escola, e para a Cecilia eu fingi que ele estava confirmando a história. Quando finalmente a levei, convencida, até o meu apartamento, ela perguntou onde estava a Kate.

-Na Irlanda – pensei rapidamente. – Com o curso dela.

-Todo mundo viajou? – Ela perguntou, desconfiada.

-Claro, é verão na Europa. Nossas escolas são tão boas que até as férias são usadas para o aprendizado. – E acrescentei, cheia de esperanças: - Agora que está mais tranquila, quer que eu marque a sua passagem de volta?

-Tranquila? Como você pode dizer que eu estou tranquila? Nada muda o fato de a Maria de Lourdes ter viajado sem a minha autorização e você, irresponsável, ter consentido! Não saio daqui até falar com ela!

O que me trouxe ao dia de hoje. Cecilia falou na minha orelha até a hora de dormir. Quando acordei, como em um filme de terror, ela já estava de pé e retomou a ladainha. Deixei para ligar para a Malu do trabalho, por motivos óbvios, pois a mulher não saía do meu pé com suas reclamações. Adoro trabalhar, mas nunca amei tanto o escritório como no dia de hoje. E agora, enquanto eu espero a Malu retornar, vem a segunda parte da minha estratégia de convencimento.

O problema é que, se a Cecilia, que é apenas minha irmã, me deixa nesse estado de nervos, imagina o que ela não faz com a própria filha? Pensava que a Malu era como ela, mas ela não é, não. É só uma menina quieta e tímida, reprimida por uma mãe louca. Ela é uma garota de dezessete anos que, pela primeira vez, sai aos finais de semana, tem amigos homens, tem até uma banda de rock! Não posso permitir que a Cecilia estrague isso. Não consigo visualizar uma pessoa normal como a minha sobrinha experimentar a vida real, tal como ela sempre deveria ter sido, e depois ser obrigada a se trancar novamente em um apartamento que mais parece um convento, vigiada vinte e quatro horas por dia pela minha irmã. Eu preciso assegurar a Malu que os pequenos passos que ela deu não têm volta, e que ela só sai de Londres sobre o meu cadáver.

---

Esse POV faz parte da Semana de 1986, que acontece até dia 20/9 no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora