(1996) Tom vê Malu pela primeira vez depois de 8 anos

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Tem uma mancha na parede que parece um cara barbudo. Ela deve estar ali desde sempre, provavelmente escondida atrás da estante que a Lana levou, mas eu só a vi hoje. E estou olhando tanto tempo pra ela que já sinto como se o cara fosse meu amigo.

A Malu vai embora hoje.

Essa manhã falei com a Kate, e vou contar que o adjetivo mais legal que ela me chamou foi covarde. No fundo ela tem razão, é uma covardia filha da puta, e às vezes me pergunto por quê. Torço pra caralho por aquela menina. Acho que torço mais por ela do que por mim. Quando ela foi embora, eu sabia que uma hora ou outra a gente ia se encontrar. Cara, a tia dela, a única família que ela tem, mora aqui. Ela não podia ser tragada pela terra. Mas foi. Por oito anos. E nesse tempo eu tinha certeza que, quando a visse novamente, se ela estivesse bem, e eu sempre soube que estaria, que seria legal pra caramba, que daria uma sensação de que tive um papel importante na sua história, que passamos o diabo, e que agora estávamos prontos para sermos amigos e dar umas boas risadas.

No entanto, tô a semana inteira fugindo dela.

-Eu só quero que ela esteja feliz - disse pro cara barbudo. Ele não me respondeu. O filho da puta ficou me encarando da parede, até que eu tive de completar: - Então vamos ver se está mesmo.

Peguei a chave do carro e fui.

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Tinha uma mulher saindo na hora que cheguei, e acho que tô ficando uma cara mais respeitável, porque ela me deixou passar pelo portão. Subi as escadas pulando de dois em dois degraus, pois me toquei que havia a possibilidade de ela já estar saindo para o aeroporto. A Kay me deu o horário do voo, e eu não sabia que horas ela sairia de casa, mas, se ainda conheço a Malu, ela acordou com as malas prontas e ia pro aeroporto com umas cinco horas de antecedência só para o caso de algum imprevisto ou eventualidade. Essa era a minha garota.

Sam abriu a porta, e bateu o medo da Rê ter saído para levá-la.

-A Malu ainda está aí?

-Tá no quarto, arrumando as coisas. Vou chamá-la - Ele respondeu.

-Não, pode deixar que vou lá - respondi, nem sei por que. Acho que nós dois nos reencontrarmos pela primeira vez depois desse tempo todo na sala, na frente do Sam, ia deixar a situação ainda mais desconfortável e esquisita do que já era. Sam deu um tapinha no meu ombro.

-Vai lá, você é de casa.

Entrei pelo corredor e parei na porta do quarto. Se fosse o Eddie, que é um bruxo com palavras, ele escreveria um livro do tamanho do Senhor dos Anéis com aquela cena. Não tivesse sido impulsivo, teria tomado pelo menos uma cerveja antes de sair de casa, porque não dava pra encarar aquilo completamente careta. A Rê não mudou em nada o quarto nesses anos todos. Faltam COISAS. Faltam os pôsteres. Faltam os livros. Falta a pilha de discos no canto ao lado do armário. Mas o armário está lá. A cama está lá. As prateleiras, numa das quais a Malu guardou, durante um ano inteiro, um grilo falante que comprei pra ela na loja da Disney, ainda estão lá. A Malu estava lá.

Ela estava de costas, sem perceber que eu tinha chegado, guardando algo na mala. Magra e pequena como eu me lembrava dela, os cabelos caindo por cima do rosto, e seu cheiro estava na porra do quarto inteiro. Eu não tinha pensado nele esses anos, mas agora fazia uma puta força pra me agarrar à minha sanidade e lembrar por que eu estava ali.

Ela se virou e deu um grito quando me viu, e eu segurei a risada. Malu era atrapalhada, às vezes parecia presa em uma comédia pastelão, e essa era uma das coisas que eu amava nela. Porra, amava tanta coisa naquela menina. Eu disse que estava feliz por ainda causar aquele tipo de reação, o que foi a primeira coisa cafajeste que me passou pela cabeça, e a abracei. Ela se encaixou perfeitamente nos meus braços, como sempre fez, tão miúda e tão frágil que sempre achei que, se a apertasse demais, ela desapareceria.

Porra, Tom, para com isso!

Só que eu tinha ido lá para ter certeza que ela estava bem, para saber dela por ela, e era isso o que eu faria. Não para pensar em cheiro e abraço. Sentei na cama e perguntei o que tinha lhe dado para voltar depois de tanto tempo. Malu sentou-se do meu lado e contou que a filha da puta da mãe dela morreu, que ela teve que ir ao Brasil e pensou na nossa história, deu uma viajada em um papo de tarô e roda de alguma coisa, e que ficou enrugada como uma uva passa na banheira.

Fiquei com a imagem da uva passa na mente. Nenhuma mulher diria isso. Com certeza, não a minha ex-mulher. Isso é Malu pra caralho.

Ela disse que tinha vindo ver se a casa dela seria em Londres. Perguntei se era mesmo, e ela pareceu na dúvida, arrependida, com o peso do que aconteceu há tanto tempo em cima dos seus ombros. Me senti protetor e no dever de mostrar pra ela que ela fez a escolha certa, mesmo que eu não soubesse se era assim que me sentia. Aquela garota faz isso comigo, acho que desde sempre. Falei de um lance que li num livro uma vez, que uma borboleta batendo as asas aqui causa um maremoto no Japão, pra mostrar que tudo o que a gente faz tem consequências e que não adianta pensar no que poderia ter sido. Eu vivo assim. Se funciona pra mim, pode ser que funcione pra ela.

-De qualquer forma, tudo terminou bem... não foi? - Perguntei, querendo mais que qualquer porra na minha vida que ela dissesse que sim. Não sei o que faria se ela dissesse que "não".

-Claro - foi a resposta. Ufa!

-E está feliz? - A pergunta mais importante de todas. Quando a gente terminou, eu pedi isso a ela. E ia ficar muito puto se ela não cumprisse.

-Eu acho que essa é a única pergunta que é mais fácil responder aos dezoito que aos trinta.

Cara, faço trinta esse ano. O que ela disse não podia ser mais verdadeiro.

Nisso a Rê chegou apressando a Malu, eu levantei e fui embora. Cheguei em casa, peguei uma cerveja, e achei que devia dar o relatório pro meu amigo da parede:

-Acho que ela está feliz. Está casada, tem um filho, está careta, e isso foi tudo o que eu sempre desejei pra ela desde que a gente se despediu naquele quarto anos atrás. E leva a mal não, mas vou comprar uma tinta pra te pintar amanhã.


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora