(1996) Kate: Um convite irrecusável

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Sem brincadeira, não sei por que as pessoas são assim. Eu sou franca pra caramba. Aliás, às vezes (e muitas vezes) me meto em enrascada exatamente por causa da minha franqueza. E aí o Vince me liga, veja bem, do jogo de futebol, dizendo que vai passar no Mick pra ver a Baby Anna e perguntando se eu quero encontra-lo lá.

-Banho não rola, não?

-Já tomei aqui no vestiário. Bora?

-Nossa, esse time está ficando bom, agora tem até vestiário. Ganharam, pelo menos?

-Não quero falar sobre isso – "Não quero falar sobre isso" é o código do Vince para "Levei mais uma goleada". – E então, vamos?

-À casa do Mick? Cercada dos monstrinhos louros?

-Singe foi pra casa, Kay. É educado e tal.

-Cara, acabei de sair do hospital, vi a mulher parindo, gastei toda a minha educação quando não dei nenhuma voadora em monstrengo algum. Agora vou esperar até o aniversário de cinco anos da Baby Anna para me recuperar.

O bom é que o Vince me conhece um pouco e não insistiu. Se me conhecesse muito, nem teria dado a ideia.

Não tenho muita paciência com criança. Aliás, não é nem isso, na verdade eu não sei nem como agir perto de criança. Poderia já ter tomado um curso com a Singe, mas ela colocou no mundo os garotos mais insuportáveis já criados. E, como são os únicos com quem convivo, decidi que crianças só falam aos berros, só andam correndo, só interagem se estapeando e só se deslocam derrubando as coisas. Não sei se estou muito disposta a comprovar se a minha teoria é verdadeira ou não.

E então, totalmente dentro do tema, o interfone tocou e o porteiro avisou que era o Tommy. Achei estranho ele vir sem avisar pelo menos do caminho, não que ele não tenha intimidade para simplesmente aparecer, mas porque suas visitas envolvem todo um ritual de mandar os meus filhos para o quarto porque ele tem um faniquito com cachorros que está cada vez pior conforme ele fica mais velho. A sorte é que tenho muito mais gatos, e estes são tolerados desde que não grude pelo nas suas roupas. Enquanto prendia meus bichinhos para o Tommy não ter ataque de frescura, me toquei que tinha de ser algo relacionado à Malu. Ela voltou há pouco tempo e ele estava lidando muito bem com isso, bem até demais. Sei que os dois se encontraram, depois se viram novamente no ritual de nascimento da Baby Anna, e agiram normalmente, como amigos, sem o menor resquício do drama pavoroso do passado. Fiquei aliviada porque o Tommy não é de guardar as coisas, ele explode e coitado de quem estiver no caminho. Portanto, se ele parecia bem, era porque estava bem de verdade. Mas, quando tocava a campainha do meu apartamento cheio de cachorros sem avisar antes, é que as coisas não estavam tão no lugar quanto eu achava.

Abri a porta e não deu outra. A primeira coisa que ele perguntou foi:

-Ele é mesmo meu?

Ele nem questionou o fato de eu não saber, e eu não saberia mesmo se não fosse a única pessoa da turma com conhecimento mínimo de matemática.

-Entra aí. – Dei espaço. – Ela te contou?

Tommy entrou mesmo e, antes do sofá, foi direto ao bar e se serviu de uísque.

-É? É meu? – Ele falou, quando se sentou no sofá e virou metade do copo em um gole.

-É claro que é seu. Você acha que a Malu, de todas as pessoas do mundo, daria um golpe da barriga em alguém, ainda mais em você?

-Eu achava que ela não faria muita coisa que ela fez.

-Porra, Tommy, a gente já teve essa conversa! A Malu não era ela, ela estava doente! E depois, ela passou muito aperto nos dois primeiros anos em Paris. A época de te procurar atrás de dinheiro era aquela, não agora!

-Desde quando você sabe disso?

-Desde que ele nasceu – eu falei, sabendo que era mais uma enrascada na qual a minha franqueza ia me meter.

-Porra, todo mundo sabe disso? Menos eu?! – Tommy explosivo. Agora, sim, a gravidade de toda a situação tinha uma reação à altura.

-Não! A Malu nunca me contou, era só para a Rê saber! Lembra aquela reunião na Rê em que ela saiu surtada para Paris e vocês ficaram pirando que a Malu havia tido uma recaída? Foi nove meses depois de ela ter ido embora, Tommy! Era só fazer as contas! A Rê voltou, eu a pressionei, ela confessou! Por que você acha que a Malu tinha pânico que a gente fosse visita-la?

-E por que você não me disse nada, caralho? Você é minha amiga, Kay!

-Porque era o segredo da Malu! Ela tinha que te contar! E juro que não pensei que ela fosse esperar tanto tempo pra fazer isso!

Caralho, que merda de argumentos! A Renata tinha me convencido com eles, mas agora que eu os repetia para o Tommy e via o seu estado, me deu vergonha de ter acredito neles, e mais vergonha ainda de os estar usando. Você de repente descobre que tem um filho de sete anos, e tudo o que a sua melhor amiga tem a dizer é que o segredo era de outra e eu não tinha o direito de contar.

Poucas vezes na vida me arrependo das minhas atitudes, mas, quando o faço, normalmente é em relação a coisas bem dramáticas. E hoje foi uma dessas vezes. Eu devia ter dito um foda-se para a Renata e ido direto contar para o Tommy. Era meu dever como amiga dele e como amiga da Malu também. Se ela estava acovardada embaixo do sofá com uma criança, eu tinha a obrigação de tê-la puxado de lá pelos cabelos. Peguei uma vodca para mim, pois meu sistema também estava precisando de álcool, e levei a garrafa de uísque pro Tommy, pois seu copo já estava quase vazio.

-Como foi a conversa? – Sentei ao lado dele. – Foi de boa? Vocês combinaram alguma coisa?

-Eu não sei o que ela espera de mim. Ela só quer que eu conheça o moleque, e vai ficar com o francês – Ele disse tão baixo que, se não estivéssemos no mesmo sofá, certeza que eu não teria escutado.

-Então acho que é isso o que ela espera de você. Ou de repente não espera nada. De repente só agora ela se sentiu forte o suficiente para contar.

-Porra, e como eu fico nessa história?! – Ele voltou a berrar. – Eu não sei de nada, não tenho poder de decisão nenhuma, fico esperando a Malu estar forte o suficiente pra fazer as coisas? Que inferno, Kay! Puta história fodida, essa! Essa mulher é o demônio! Eu só tenho paz quando ela tá longe, caralho!

-Não diga isso! – Cacete, se Tom achava que seu casamento com a vaca da Lana havia sido um período de paz, a conversa havia sido horrenda mesmo. – Ela te contou, devia ter feito isso antes, mas pelo menos agora ela contou! E você tem poder de decisão, sim! Você pode ignorar essa história ou fazer parte da vida do Victor. Ou pelo menos ir lá ver como é a cara dele. Se a Malu vai ficar com o tal do francês ou não, isso é a vida dela. A sua vida é que você tem um filho e tem que pensar em como vai agir de agora em diante.

Ok, a Malu não ficaria com o francês, mas nisso a gente daria um jeito depois. Uma outra característica minha, além da franqueza e dos raros arrependimentos, é a de me meter em tudo quando os envolvidos são cegos ou enrolados demais para dar jeito nos seus problemas. Mas isso era o passo dois. O primeiro passo era dar colo. Sei fazer isso também.

-Não tô a fim de pensar – Tommy respondeu. – Não hoje. Bora tomar tudo?

A semelhança entre Vince e Tommy é que, naquela noite, eles fariam o que estavam dispostos com ou sem a minha companhia. A diferença entre Vince e Tommy é que Vince tomaria umas cervejas com o Mick, fugiria dos monstrengos, viria pra casa quando desse muito no saco e ficaria bem; já o Tommy precisaria de alguém para ficar de olho nele. Por isso recusei o primeiro convite, mas não tinha como fugir do segundo.


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora