É engraçado que, quando a gente é mais novo, tudo o que a gente quer é ser diferente, e no fim termina sendo presa de toda espécie de lugar comum. Tipo quando eu dizia que não me importava como iria morrer, desde que estivesse me divertindo. Já que temos um número de dias limitado e, em seguida, teremos o nada absoluto, simplesmente deixaremos de existir, pois o consolo de que vamos para o céu ou voltaremos à Terra em outro corpo nunca serviu para mim, então que a nossa saída do palco seja do caralho. Apagar para sempre no meio de uma puta bebedeira, uma overdose durante uma viagem fantástica, um salto mal calculado de um penhasco, ver a água azul se aproximar e, sem que me dê conta, rachar a cabeça em uma pedra. Não importava, tinha de ser de repente, inesquecível, e meu último pensamento seria "caraca, tô feliz pra caramba!"
Os anos passaram, minha vida deu um giro completamente novo e inesperado. Não me sinto velho, nem perto disso. Porra, não estou nem perto de estar velho. Talvez um pouco mais perto de quando eu tinha vinte anos, mas nem por isso a idade está me pegando. Finalmente perdi a cara de criança de comercial de margarina, mas ainda continuo parecendo ter pelo menos dez anos a menos do que diz minha identidade. O sorriso inocente continua ali, mas não me importo mais. É que um dos lugares comuns que eu caí quando era mais novo é que não tinha inocência alguma quando na verdade sou ingênuo pra caralho. Bem simples também. Quando morrer, vai ser aqui.
Onde tudo começou.
Durante a minha vida adulta quase toda, acreditei que foi em Saint-Malo. O que fez com que eu me enganasse tão redondamente é que, por mais que eu dissesse que não, eu via Saint-Malo como um lugar físico. Uma cidade, e não uma ideia. Saint-Malo é como a Alegoria da Caverna de Platão, e cada uma das pessoas que estiveram presentes naquele verão a levarão impressas na alma para sempre. Não é preciso ir lá para estar lá, entende? E, se Saint-Malo me fodeu, a Sardenha me salvou.
Não me importo como vou morrer. Se vou estar me divertindo pra caramba, se vou estar com cem anos, senil e entrevado. Se for aqui, eu estarei em paz.
Chegamos hoje de manhã e fomos direto à marina. Carro cheio de malas, entramos os quatro e não cabia nem mais um alfinete e Emily e Luca começaram a dizer que queriam passear de barco.
-Vocês acabaram de sair de um avião, entraram em um carro e vão pra um barco? Alguma coisa contra a terra firme? – Minha mulher falou. Hahaha Ela não tem nada contra a terra firme.
-Vamos, por favor, por favor, por favor! – Luca consegue colocar uma quantidade absurda de "por favor" em uma frase. – Eu quero usar minha câmera subaquática, e na praia de casa eu vou ter de tirar foto do pé da Emily!
-Não! Não quero mais fotos do meu pé! – Emily protestou. Verdade, desde que o Luca ganhou aquela câmera, ele a usa indiscriminadamente dentro da piscina e começou uma coleção bem tosca e chata pra caralho de fotos de pé e joelho de todo mundo. – Vamos? Vamos andar de barco?
-Por favor, mamãe! Por favor, por favor!
-Faz a cara de coitado, Luca! – Eu ajudei. A "cara de coitado" é meu truque infalível dominado por todos os Serovyh e passado de geração em geração. Em 2128, haverá algum Serovyh no mundo fazendo cara de coitado para conseguir qualquer coisa que seja.
-Cara de coitado, não! – Minha mulher reclamou. Como todas as pessoas com um coração, ela não resiste. – Tá bom! Então vamos à marina.
Não disse? Irresistível. Esse tem meu sangue nas veias!
Estacionei o carro na marina e fui pegar as roupas de banho porque, como reza a tradição, eu faço as malas. Tenho esse toc esquisito com as minhas roupas desde que me conheço por gente, elas têm sempre de seguir uma ordem específica e não, nunca tratei, até porque na verdade ele me ajuda. Assim, se já tiver na cabeça o que vou vestir, o quarto pode estar completamente escuro que eu encontro exatamente o que eu quero e, sério, sou super calmo, mas nada me deixa louco como achar uma calça a dois cabides de distância de onde ela deveria estar. Sigo a mesma metodologia com as malas, e a minha mulher tem horror de fazê-las. Tipo, se o meu toc é patológico, a raiva que ela tem de malas também é. Logo, faço todas desde que a gente se casou. Como se não me conhecesse, ela disse, assim que abri o porta-malas:
-Nunca vamos achar as roupas de banho nessa confusão.
-Marque no relógio – Eu desafiei.
Ela olhou pro pulso, esperando o ponteiro dos segundos chegar ao doze, e por fim disse:
-Já!
Comecei os trabalhos. A mala que estava por cima era a dela, fácil. Tinha uma bolsinha do lado exatamente pra isso. Abri o zíper, achei o biquíni que ela gosta, e ela tem essa mania linda pra cacete de guarda-lo sempre dobrado como em loja, pra não separar as peças. Coloquei a mala de lado já localizando a bolsa de viagem da Emily, que é um amarelo marca-texto, daqueles que você não pode olhar diretamente a não ser que esteja usando óculos escuros. Aí já dava mais trabalho, porque a Emily gosta de fazer a própria mala e sua cabecinha não segue muito método, pelo menos não nesse sentido. Eu a abri e estava uma confusão dos diabos. Lutando contra o toc, comecei a tentar identificar tecidos e eu podia ouvir a minha mulher rindo de mim pelas minhas costas, enquanto ficava de olho no relógio. Porra, Eddie, calma, pensa! Emily, quando chega à Costa Esmeralda, entra em casa por uma porta e já sai pela outra, a caminho da praia. Nisso, ouvi a Emily segurando o riso. Minha gatinha não podia jogar pôquer nem se a sua vida dependesse disso.
-Você já está de maiô, Emily! – Falei, com ar de vitória, enquanto fechava a bolsa dela e partia para a próxima.
-Isso! – Ouvi a voz da minha filha atrás de mim.
Vi a minha mochila e não teve nem graça, nem precisei abri-la direito para pegar a bermuda.
-Meu chapéu! Preciso do chapéu! – Minha mulher começou a gritar, e aposto, mesmo sem me virar, que ainda olhava o relógio. Estendi a mão, o peguei e passei para ela enquanto, com a outra mão, puxava a mala do Luca. Havia cinco compartimentos. No principal, estavam as roupas maiores. Em um dos menores coloquei produtos de higiene, em outro coloquei roupas de baixo e...
-Bermuda ou sunga, Luca? Bermuda ou sunga?! – Falei, agora já meio desesperado.
-Sunga! Sunga! – Luca gritou, contagiado pela atmosfera de urgência.
-Sunga, caralho! – Tirei a cabeça do porta-malas, triunfante, com ela na mão. – E aí?
Minha mulher ergueu os olhos do relógio, tentando parecer brava, mas sem conseguir segurar o sorriso nos cantos da boca:
-Um minuto e meio! Impressionante, Eddie. Isso devia ser um esporte olímpico.
Porra, devia. Não sou bom em muitas coisas, mas, nas que sou, sou bom para caralho.
Então é o seguinte: O dia que eu morrer, seja quando for e da forma que for, será aqui. Não precisa de emoção nem ser inesquecível. Esse lugar já me deu memórias suficientes. E, se chegar aos cem anos e perder a lucidez, tenho certeza que é para momentos como esse que a minha mente vai vagar. E aí posso estar entrevado, posso ser pouco mais que um corpo, mas se ainda houver alguma consciência que me leve para esse dia, vou morrer pensando: "Caraca, tô feliz pra caramba!"
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Este é o último POV da Semana do Eddie. Domingo, 3/1, tem personagem novo!
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...