(2000) Mick: Era pra ser simples

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Ela pediu um sundae de dez andares, cheio de calda com umas amoras boiando, e eu ficava pensando que não tinha um primeiro encontro como aquele desde os meus quatorze anos. Não que fosse um primeiro encontro infantil, mas pelo menos não tinha um que envolvesse sorvete. Lembro até hoje que ela estava com o cabelo preso, um cabelo louro dourado que guardava e refletia toda a luz, os olhos, às vezes verdes, às vezes azuis, parecia que a gente estava olhando aquelas paradas, sabe, qual o nome? Ah, caleidoscópio. E o encontro podia ser uma merda total, mas eu não sairia dele sem dar uma mordida naquela boca rosada. Puta que pariu, a menina parecia uma boneca. Parecia que cada parte dela tinha sido pensada, desenhada e montada, sabe? E o mais louco foi o que ela disse. Tipo, conheço uma porrada de mulher linda e já saí com algumas delas, mas o que a Singe falou foi bem doido. Eu tinha dito que era o mais velho de cinco irmãos e ela falou:

-Ah, eu sou filha única e detesto. Deve ser legal ter um monte de irmãos, mesmo que eles encham o saco, mas para dividir as coisas. Mais ou menos como ter amigos morando na sua casa. Por isso que, quando eu me casar, quero ter uma família grande. Dois filhos, talvez até três. Por esse lado, sou bem tradicional. Quero casar de branco, morar em uma casa, ter uma família daquelas bem caretas, sabe?

Não é sempre que você sai com uma menina que quer o mesmo que você, ainda mais quando vocês são novos pra caralho e o que vocês querem é casar e ter filhos.

E então, anos depois, ela estava me dizendo que o Dave não viria aos Estados Unidos passar o natal comigo.

-Porra, a gente combinou! - Caralho, a Singe disse que ia ter trégua! Que ela ia parar de colocar os moleques contra mim! A gente havia tido um papo super legal, cacete! A gente não se acertou, não nós dois, mas todo o resto parecia que estava caminhando e Singe parecia quase sã de novo!

-O Josh e a Baby vão, mas o Dave se recusa a ir, sinto muito.

Hã? Que porra é essa?

-Ele tem dez anos, caralho! Não tem que se recusar! Você o enfia em um avião, ele vem e pronto!

-Mick, não posso fazer isso com ele. Ele está ressentido com você, a gente precisa respeitar.

-Ressentido comigo por sua causa! - Cara, puta impotência do caralho! Eu longe esse tempo todo, Singe, que provavelmente voltou atrás no nosso acordo, despejando todo tipo de merda na orelha deles, e eu sem poder fazer nada! - Passa o telefone pra ele.

-Ele não quer falar com você.

-Que porra eu fiz?!

-Mick, o Dave está passando por uma fase difícil. Sei lá, ele tem extravasado a agressividade dele nem sei por quê, acho que tem a ver com o fato de ter sido insultado e ter visto a própria mãe ser agredida.

-O quê? Quem fez isso? - Ok, agora a coisa ficou séria. Dave é difícil e a Singe é louca, mas ninguém insulta meu filho e agride a minha ex-mulher e vive pra contar a história.

-A Malu!

Hã?

-Foi horrível, Mick. Saímos com as crianças, e o Dave se envolveu em uma briguinha no parque. Quando eu vejo, está a Malu o chamando de louco, dizendo que ele tinha de ser mandado pra terapia. Eu fiquei histérica, claro, quem não fica pra defender o próprio filho? E aí ela me deu um tapa e rolou no chão comigo na frente das crianças, no meio da rua! Não entendi até agora! Tô tão magoada, Mick!

Hã?

Porra, já vi a Malu bem louca na vida, e nem assim ela era capaz de levantar a mão pra quem quer que fosse, muito menos xingar uma criança.

-Você não vai dizer nada, Mick? - Singe me perguntou.

Caralho, sabia nem o que dizer.

-Você não vai me defender? Não vai defender o nosso filho?

-Singe, eu não sei como aconteceu - falei, totalmente perdido. Tipo, defenderia sempre, mas aquilo não fazia o menor sentido!

-Eu estou te contando exatamente como aconteceu!

-Já falo com você sobre isso, tá? - Porra, acho que desliguei o telefone na cara dela. Até esqueci momentaneamente a história do natal. Desliguei o telefone e fui atrás do Tom: - Ei, você tá sabendo de uma história que a Malu xingou o Dave e atacou a Singe no meio da rua?

-Quem? A Malu? A minha mulher Malu? Essa Malu? - Tom perguntou, espantado.

-Isso, a única que a gente conhece. Singe que falou. Dave não quer vir passar o natal, ela não quer enfiá-lo de qualquer maneira no avião, disse que ele tá traumatizado, sei lá, e veio com essa história. Sem chance de ser verdade, né?

-Porra, vamos descobrir agora.

Caralho, e foi verdade. Não exatamente da maneira que a Singe me contou. Parece que Dave teve uma briga feia, a Malu disse que ele precisava de terapia, a Singe falou pra Malu que ela só lhe pediria conselho quando fosse largada à beira da morte à porta de um hospital, a Malu se descontrolou e aí lhe deu um tabefe. E quem se atracou com a Malu foi a Singe. Pelo menos, essa foi a versão da Malu. Mas, por algum motivo, ela é bem mais fácil de acreditar.

Não sei que porra aconteceu com a Singe, e prefiro não acreditar que tenha sido algo a ver comigo. Mas cacete, lembro daquela menina linda sentada na sorveteria, tomando aquele sundae, e fico pensando o que pode ter acontecido no meio do caminho para dar tudo tão errado. Era pra ser fácil, caralho! Éramos duas pessoas que só queriam se casar e ter uma família grande e careta e ser felizes. Não tem sonho mais simples que esse, e fracassamos totalmente nele.


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora