Ai que casa vazia. Ai que espaço imenso e desolador. Ai que mansão enorme. Ai que deserto...
Tirando, claro, as outras seis pessoas que ainda moram aqui. Sete, se contarmos comigo.
Mas é tudo tão horroroso, pavoroso e com ar de deserção! Fico lembrando do dia que o Victor cismou de pintar seu quarto de preto, o dia que o Victor cismou de se mudar pro sótão, o dia que Victor entrou com os dois pés na pavorosa adolescência, se encastelou no sótão e bateu a porta na minha cara, o dia que o Victor se mudou pro loft, o dia que o Victor pediu uma banheira de hidromassagem no loft, a época que o Victor enchia o quintal de amigos, me mandava servir comida pra todo mundo e me proibia de conversar e usar biquíni, o dia que o Victor me filmou aos prantos em uma despedida como essa pra mostrar no seu documentário que nariz de estrela do rock também escorre...
EU NÃO ACREDITO QUE MEU BEBÊ ESTÁ PARTINDO!
-E a tatuagem, mãe? – O filho da puta ainda teve a cara de pau de perguntar. Ele se referia a uma tatuagem que fiz que toma todo o lado esquerdo das minhas costas e mostra uma árvore com seis pássaros levantando voo.
Merda, devia ter feito tudo dentro de uma gaiola.
Gostaria de deixar claro que estávamos no nosso almoço de despedida. Temos feito uma refeição de despedida por dia, mas a de hoje, como ele vai embora amanhã, eu disse que queria que fosse como nos velhos tempos, só nós dois. Falei para ele escolher qualquer restaurante e eu o levaria. O danado escolheu o McDonald's.
-Você vai morar nos Estados Unidos e quer se despedir da Inglaterra comendo no McDonald's?!
-Não ia me despedir comendo torta de rim e sopa de tomate, mamãe.
O que era um bom ponto. Então fomos só os dois, Victor dirigindo o meu carro, até o McDonald's mais próximo, onde ele pediu o substituto do McLanche Feliz no seu coração: O Big Mac, e eu, como sempre, não descobri nenhum sanduíche que me desse vontade de comer e acabei pedindo um sundae de chocolate, depois que ele prometeu que não diria para ninguém que eu estava comendo doce.
-Prometo, mas você tá ligada que todo mundo sabe, né?
-"Todo mundo", quem? – Perguntei, em pânico.
-Todo mundo. Inclusive, todo mundo sabe que você cavou um buraco no jardim, enterrou uma caixa de chocolate e colocou um vaso em cima pra marcar o lugar. Eu ia mudar o vaso, mas a Angie não deixou.
-Victor! Que crueldade! – Exclamei, sem saber se sentia mais vergonha ou choque.
-Crueldade nada, mamãe. Não foi o médico que mandou?
-Aham. Pra eu não engordar. E, desde que eu me entendo por gente, engordar é tudo o que quero. – Mas Victor havia instigado a minha curiosidade e eu não resisti: - O que mais você sabe?
-Como assim?
-Ah, sei lá, coisas a meu respeito que eu não sei que você sabe.
-Sei que o seu Purê de Batata Explosão de Algodão Doce na realidade leva beterraba.
Gente!
-Mas como...?
-Mãe, ele tem gosto de beterraba!
-Não tem!
-Tem, sim! E o Suflê de Nuvens na verdade é couve-flor.
-Seus irmãos sabem? – Falei, chocada.
-Todo mundo sabe.
Eu sou um fiasco! Dezenove anos desenvolvendo técnicas de esconder legumes, e todos sabiam meus ingredientes secretos!
-Mas quem inventou a Torta Florestal foi o seu pai Jean-Claude – resmunguei, mal-humorada, cutucando meu sundae.
Victor deu um sorriso nostálgico. Um lindo sorriso. Ah, droga, meu bebê é todo bonito.
-Você já parou pra pensar como seria se tivéssemos continuado na França, mãe?
Levei tanto susto que fiquei sem saber o que responder, mas, como ele continuava me olhando e esperando, falei a primeira coisa que me passou pela cabeça:
-Com certeza teria sido bem mais difícil te mandar para uma faculdade em Nova York.
-Sei lá, às vezes eu penso nisso – ele disse. – A vida da gente foi bem louca. Ainda é. Ele era um cara bem tradicional. Acho que não aguentou o tranco. Sinto falta dele.
Eu, não. Sinto falta de algumas coisas da época. Sobretudo, sinto falta do Victor ser pequeno, de colocá-lo na cama, de ouvir suas novidades bobinhas sobre as brincadeiras da rua, do momento em que fechava a sua porta e a casa ficava calma, de sentar no sofá com um livro, um cigarro e um copo de Coca-Cola enquanto ouvia o Jean-Claude lavando a louça do jantar pra mim. Sinto saudades de algumas pequenas coisas. Assim como, depois de amanhã, vou sentir falta de uma boa parte da confusão do café da manhã, de metade da caixa de leite derramada sobre o balcão, dos sapatos do Victor no meu caminho, de falar pelo amor de Deus, que ele comprasse meias novas pro futebol, que se eu lavasse aquelas elas desintegrariam a máquina.
Acho que a vida toda a gente sente falta de alguma coisa.
-Ele me mandou uma carta – Victor falou.
-Antes de... – Quase engasguei com o sorvete.
-Mais ou menos um mês antes. Ele nunca enviou, a mulher dele achou depois e me mandou.
-Victor, isso tem cinco anos! Por que você nunca me falou?
-Não sei. Era uma época complicada.
Era uma época supercomplicada.
-Acho que eu queria lidar com uma coisa de cada vez.
-Mas era boa? – Não ia ser indiscreta, mas não queria o Victor triste, culpado ou se martirizando por cinco anos sem que eu pudesse fazer nada.
-Era muito boa – Ele sorriu com os olhos marejados. – Muito, muito boa. – E em seguida seu sorriso abriu mais um pouco: - Tão boa, aliás, que não vou falar nada se você tomar uma Coca-Cola.
-Eu te amo, Victor – falei, e nem era por causa da Coca.
-Te amo também, mamãe. Obrigado por tudo. Desculpe por tudo, também. Mas se me fizer pagar mico amanhã no aeroporto, conto da Coca pra todo mundo.
-Eu nunca te faço pagar mico!
-Você sempre me faz pagar mico!
É, faço.
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Este POV é o último da Semana da Malu. Domingo, 15/11, será anunciado um novo personagem nos grupos Realidades Paralelas da Mari (Facebook) e Canções da Minha Vida (WhatsApp)
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...