Sou muito sensitiva e várias vezes não sou levada a sério por isso. Por exemplo, antes de sair para o trabalho, meu marido me pergunta se eu estou recebendo ondas telepáticas de que vai chover, para ele saber se leva o guarda-chuva.
-Estou, minhas ondas telepáticas estão te mandando olhar para o céu e ver se parece que vai chover.
Obviamente, isso não me estressa. Aliás, nada na vida me estressa. Passei por muita coisa para dar trela para o negativo e o mau humor. Minha irmã é muito diferente de mim e sempre falo para ela que ela precisa tornar a vida mais leve, nem que seja tirando o peso extra que carrega sobre os ombros.
Mas isso tudo por que? Ah, sim, para falar sobre a Malu.
O Luc (que vem a ser o meu marido incapaz de identificar nuvens de chuva no céu) diz que é impossível, mas eu sustento, mesmo após tantos anos, que senti a primeira vez que a Malu me ligou. Senti porque havia completado cinco anos de NA, estava feliz, limpa, digna e útil, e com uma enorme vontade de reverter o bem que fizeram para mim para outras pessoas. E estava exatamente nesse estado de espírito quando uma moça me telefonou, dizendo que havia conseguido meu número através da Reese. Reese era uma amiga do NA que havia se mudado há um ano para York, na Inglaterra.
-E como ela está? – Perguntei.
-Está bem. – E ficou em um silêncio tão longo que pensei que houvesse acontecido algo errado com a Reese, mas na verdade ela estava sem graça. – A Reese me deu seu telefone porque vou a Paris passar um tempo daqui a duas semanas, e... bom... eu...
-É toxicômana em recuperação? – Por já ter passado pela tortura de dizer aquelas palavras para um estranho pela primeira vez, resolvi encurtar seu sofrimento.
-Sim. Acabei de terminar o meu tratamento e estava querendo umas dicas, se você puder me dar, claro, como lugar para ficar, reuniões, essas coisas.
Viram como eu sou sensitiva?
Disse que a buscaria na estação mesmo que ela dissesse que não precisava, mas sei como é o pavor das primeiras vezes. Quando a gente se limpa, tudo vira uma estreia, e não necessariamente boa. E, no caso da Malu, ela estrearia em uma cidade nova, na qual só havia passado míseros quatro dias dois anos antes, segundo havia me dito pelo telefone. Achei tudo bastante ousado, senão um pouco louco, até que ela desceu do trem. Havíamos nos descrito fisicamente e dito que roupa usaríamos para nos reconhecer, mas fiquei incrédula quando aquela menina desdeu do vagão. Absolutamente perplexa. Perguntei quantos anos tinha antes mesmo do "como vai". Ela era uma criança de dezenove anos, sozinha em Paris, com o tratamento recém-terminado. Eu tive de adotá-la, principalmente quando ficou claro que ela não havia vindo de passagem, como dera a entender no início.
Malu se tornou minha irmã (muito) mais nova e uma das minhas amigas mais queridas. É fascinante ver o seu crescimento, como ela chegou a Paris cheia de decisões e objetivos, uma adolescente cuja vida estava um caos, logo em seguida descobriu que estava grávida, e se virou, batalhou e conquistou. Às vezes, em suas crises de insegurança, tenho vontade de filmar a sua vida com outra pessoa fazendo o seu papel, mostrar-lhe e perguntar: "E dela, o que você acha? Não é uma pessoa incrível?" Duvido que não concorde que é, sim, um ser humano espetacular. Não que seja perfeita. Malu tinha, e tem, muito medo, o que eu acho até compreensível. Medo do que a vida pode se tornar, medo do que pode fazer, e o pior, medo do que é capaz de fazer. Foi para superar isso que eu tanto a apoiei a voltar para a Inglaterra. E, vou confessar, nas vezes que fui visita-la eu fiquei bastante decepcionada. Havia tanta promessa no seu futuro quando a ajudei a fazer as malas para ir embora, mas parecia que ela pegou a sua vida de Paris, uma vida conquistada a duras penas, mas uma vida medrosa, e a transportou para um casarão nos arredores de Londres.
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O Lado Escuro da Lua
RomantizmEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...