(2002) Eddie: Antes fosse o ponto de partida

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É que eu tinha um plano.

Por todas as merdas que eu passei na vida, e não sou de me lamentar nem nada, mas porra, passei por merdas e não foram poucas, eu sempre pensei no plano. Era o que me levava pra frente, sabe? O que me impulsionava. Gosto de olhar pra trás, quero ter sempre certeza do que me construiu, mas não queria que nada daquilo me derrubasse. De tudo que pudesse acontecer comigo, eu não queria me tornar um dos velhos bêbados e amargos da minha vizinhança, não podia deixar que a vida matasse a minha criatividade, jamais me entregaria à falta de ambição e, pior, à falta de humor. Jamais me tornaria o meu pai. Meu pai podia ter sido o cara mais incrível de todo o universo, só lhe faltou uma coisa: bolar um plano. Quando o seu mundo desapareceu, não havia mapa que o levasse a um novo. Apesar dos médicos só terem assinado seu atestado de óbito quando seu coração parou de bater aos setenta e dois anos, ele na verdade morreu aos cinquenta e um, quando fugiu com a mulher e um bebê do único lugar que estava disposto a chamar de lar.

Meu plano ruiu. Perdeu toda a importância e virou pó. Enquanto o avião me levava para casa, eu tentava juntar os cacos de todas as promessas que me mantiveram de pé esses anos todos, e não conseguia achar nada. Não consigo encontrar coisa alguma. Foi preciso uma semana para transformar uma vida que eu havia levado tanto tempo para construir e que parecia a mais sensacional que caras como eu podem ter em algo totalmente equivocado, completamente errado, absolutamente infeliz. Foi como se eu tivesse nascido cego e tivesse me sido permitido enxergar por apenas uma semana. Como se eu tivesse nascido surdo e pudesse ter escutado por apenas alguns dias. Como se eu estivesse em coma e, por um breve período de tempo, tivesse podido me levantar e deixar o hospital. E, depois, é impossível se conformar com a vida anterior.

Todo esse tempo lutando apenas para sobreviver. Eu vivi. Eu morri.

E você achando que doía antes, Eddie. Que tal isso agora?

Passei um bom tempo andando pela cidade, sem coragem de entrar em casa e retomar a vida de onde ela havia parado. Lembrei do meu pai abrindo a porta todas as noites. Sentando-se à mesa. Abrindo seus cadernos e escrevendo, escrevendo, escrevendo. Nunca soube e jamais vou saber o que ele escrevia. Seus cadernos se perderam entre o período que me mudei de casa e a sua morte. Sempre achei que fossem poemas, artigos, pensamentos sobre o cotidiano. Hoje acho que eram cacos de uma vida que ele não conseguiu tornar a juntar. A dor matou o meu pai e me deixou órfão muito mais cedo do que os registros oficiais dizem. Penso na Emily para que o mesmo não aconteça com ela.

-Ué? Já voltou? Já terminaram as gravações? – A Rê me recebeu quando finalmente toquei a campainha dela. Tirei a Emily do seu colo, e esta envolveu meu pescoço em um abraço. Ela cheirava a simplicidade. A uma época em que mesmo quando você mora em um conjunto habitacional e se cria nas ruas, você é feliz. Uma época em que você nunca colocou os pés em Saint-Malo.

Se sempre teremos Saint-Malo, por que ele parece mais distante e idílico que nunca?

-Já voltei. As gravações não terminaram, mas... – Não consegui pensar em uma explicação, então apenas disse: - Mas eu voltei.

-Está tudo bem? – Rê me olhou, desconfiada.

-Está – Respondi, meio robótico.

Só queria ter esperanças que um dia isso vai passar. Sei melhor que ninguém que esse dia não vai chegar nunca.

-Eu vou levar a Emily, se não tiver problema – Falei, tentando de alguma forma me agarrar à realidade.

-Problema nenhum. Mas fica aí, íamos jantar daqui a pouco. Você janta com a gente.

Fiquei porque não suportaria ficar sozinho. Conversas vazias, um dia sem brilho, um jantar ridículo. Normalmente eu sempre iniciava os assuntos, hoje a Rê dizia vez ou outra, para cortar o silêncio:

-E as gravações? Estão indo bem? Não entendo isso.

-Estão bem.

-E como funcionam?

-Bom, a gente... grava. Está tudo bem.

Mais algum tempo de silêncio.

-Mesmo?

-É. Mesmo.

Como ela podia me pedir pra voltar com a Rê, como ela podia achar que qualquer traço da minha vida anterior podia ser retomado? Não conseguia imaginar um futuro, jamais seria capaz de ressuscitar um passado. Principalmente aquele. Um teatro patético de uma vida de mentira. Levei a Emily pra casa e ela dormiu, e passei bastante tempo a olhando em sua cama, o rostinho mais lindo do mundo e em uma paz absoluta, sem ter ideia de todas as merdas que fiz antes dela e que continuo fazendo depois. Algumas coisas não dependem de mim. Outras e, principalmente, outras pessoas, sim. Deixei que o buraco me tragasse uma vez e jurei que isso nunca mais aconteceria. Não posso deixar que ele faça isso de novo. Não posso porque carrego o que aconteceu com a Amber nas costas. Não posso pela criança que eu fui. E, mais que tudo, não posso pela Emily.

Não há mais nada da Rê no apartamento, só os móveis que ela comprou pra montar o escritório. Antes de ir para a Sardenha, quando era outra pessoa, falei para ela chamar um caminhão de mudança e levar os móveis, eram dela, mas ela respondeu que nem tinha onde coloca-los. Parecia triste e, ao mesmo tempo, incrivelmente forte. Quando ela me entregou sua cópia da chave e partiu, eu me senti o maior fiasco da humanidade. E, por mais que houvesse uma esperança, tive muito medo de terminar os meus dias sozinho.

Fiasco eu me sinto agora. E ainda tenho medo, mas eu simplesmente sei que vou ficar sozinho para sempre. Uma coisa é viver com uma esperança mínima. Outra é não ter esperança alguma.

Conheço a solidão em seu estado bruto, não diluído, com um símbolo de caveira no rótulo. Não adianta ter tantos amigos quanto eu tenho, me cercar deles com a obsessão com que me cerco, quando meus ossos são feitos de solidão. Ela sempre está comigo e, por mais que eu ache que vou conseguir escapar, ela volta para me mostrar que é minha única companheira.

Fiquei sentado na poltrona do quarto da Emily, ao lado da cama, e tentei pensar em um plano. Alguma merda de plano que a poupasse do meu destino, que a blindasse contra a minha tristeza, que não deixasse que ela tivesse o mesmo pai que eu tive. Não conseguia pensar em nada. Dessa vez, eu estava oco.

Cubos de gelo são fantásticos. Mas podem te matar se você não tiver a oportunidade de construir novos.

O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora