Começa assim:
"Hoje é um dia muito importante, mas não pelo motivo que vocês estão pensando".
Hum.
Não.
O papai diz que eu posso tudo, menos voar sem avião, atravessar paredes sem porta e respirar embaixo d'água sem tanque de oxigênio. Ele é muito esperto, mas tem mais uma coisa que eu não sei. Eu não sou boa com palavras. Pedi ajuda da dinda, que é a pessoa mais esperta do mundo todo depois do papai, e ela disse que estávamos lascadas, pois ela é pior com palavras que eu, mesmo que ela esteja melhorando. A dinda também se enganou, pois eu me enrolo tanto para falar que aprendi a falar com as mãos, ainda que hoje em dia quase todos me entendam, mas falo com as mãos porque é divertido e a Angie pode me contar seus segredos em qualquer lugar sem que ninguém saiba de nada.
Então eu cheguei à floresta de bolsas com o papel que a dinda me ajudou a escrever. Eu desenhei todas as bolsas que estavam ali, e fico muito feliz porque as imaginei lindas, e o papai, que é esperto e mágico, tirou todas do papel. Elas foram arrumadas em uma sala muito grande e muito clara onde as pessoas podiam olhar pra elas. Achei que só a minha família e os meus amigos iam querer vê-las, mas havia muita gente que eu nunca tinha visto antes, tinha uma moça tirando fotos e outra me fazendo perguntas, e eu tinha de dizer que gostava de bolsas e gostava de desenhar, e por isso gostava de desenhar bolsas. A moça perguntou como eu me sentia tendo síndrome de Down e uma floresta de bolsas. Foi uma pergunta muito boba, pois uma coisa não tem nada a ver com a outra. Se você tem síndrome de Down e gosta de florestas de bolsas, então faça uma. Se não gosta, faça outra coisa. O papai sempre falou que a gente pode fazer o que quiser e que síndrome de Down não tem nada a ver com isso.
A dinda veio falar comigo e perguntar se eu queria ler o meu papel.
-Quero, sim! Vamos chamar o papai!
-Eu fiz um lugar de ler papel, Emily!
-E qual é?
Um lugar de ler papel em uma floresta de bolsas devia ser sensacional! Ela pegou a minha mão e fomos até onde o chão era mais alto e havia um microfone, que me deixou nervosa.
-Precisa? – Perguntei pra dinda.
-Não precisa, mas você não quer que todo mundo escute?
-Sim! Quero! – E queria, porque era muito importante.
-Então não fique com medo de falar. O que o seu pai sempre diz?
-Que medo é a coisa mais castradora do mundo.
-E é!
-É sim!
-Então não tenha medo – Ela me abraçou e falou ao microfone: - Gente, a estrela da noite queria dizer umas palavrinhas.
Todo mundo virou para mim e eu fiquei mais nervosa ainda. É muito chato porque não sou boa com palavras e às vezes as pessoas não entendem quando eu falo, mas lembrei que estava no lugar de ler papel para ler um papel para o papai, e ele sempre me entende, mesmo quando eu falo com as mãos, mesmo quando eu falo com a boca, mesmo quando eu só penso em um enorme sanduíche de presunto e, de repente, ele aparece na porta do meu quarto com um pra mim. Ele estava em pé na primeira fila, entre a mamãe e a dinda, e estava sorrindo. O papai sempre sorri. É que ele vem da Terra dos Homens Gigantes Que Estão Sempre Sorrindo.
O papel que eu li era assim. Ainda está comigo, por isso sei exatamente o que diz:
"Hoje é um dia muito importante, e é pelo motivo que vocês estão pensando. É o dia que eu estou lançando a minha floresta de bolsas e é o aniversário do meu pai. Pode parecer que não tem nada a ver, porque o meu pai não é uma bolsa, mas eu desenhava porque a minha cabeça ficava cheia e tinha de passar algumas coisas pro papel. Então o meu pai, que é mágico, tirava o que eu fazia do papel e dava para as moças do ateliê tornarem realidade. A realidade no início era muito inútil e sem função e não dava para guardar coisas ou machucava o ombro, então o meu pai me falou para fazer cursos para que as ideias na minha cabeça ficassem mais práticas e, a realidade, mais útil. Ele dizia que eu podia fazer o que quisesse...
Nessa hora, eu olhei pro papai, e a sua boca estava falando "menos...", e eu entendi mesmo que não fizesse som algum, então falei, apesar de não estar no papel:
"Menos voar sem avião, atravessar paredes sem porta e respirar embaixo d'água sem tanque de oxigênio. Se hoje existe uma floresta de bolsas, é só por causa dele. E eu não sou boba e sei que algumas pessoas olham pra mim diferente e acham que eu não sou capaz de um monte de coisas. Eu tenho a minha floresta de bolsas porque sou capaz, sim. E sei disso porque eu tenho o meu pai. Feliz aniversário, papai. Muito obrigada. Eu te amo"
Um monte de gente me aplaudiu, então eu acho que eu e a dinda escrevemos um papel bonitinho, só que eu não tinha escrito o papel para elas, tinha escrito para o meu pai. Ele veio até o lugar de ler papel e me abraçou bem apertado e me ergueu no colo. Ele diz que o bom de ele ser o homem mais alto do mundo e eu ser a moça mais baixinha é que ele pode me pegar no colo até eu ficar velhinha e ele ficar mais velhinho ainda.
E uma vez eu respondi que não queria que ele ficasse mais velhinho que eu velhinha, porque ele morreria.
E ele respondeu que a gente é feito do pó de estrelas e que é isso que acontece conosco quando dizem que a gente morre: a gente volta a ser estrela. E que, cada instante que a gente vive que vale a pena, é eternizado em um cubo de gelo, como uma tia Gigi que não conheci e a tia Alex ensinaram. E que por isso somos eternos e, quando ficarmos com saudade de alguém, é só abrir o congelador.
Fiz um lindo cubo dessa noite e botei na minha geladeira. Posso não ser a pessoa mais esperta do mundo, como o papai e a dinda, mas tudo o que eu sei, foi ele quem me ensinou. Queria que todas as pessoas do mundo tivessem o meu pai. Como não dá, espero que ele seja muito feliz com a filha que tem. Eu sou muito feliz e muito sortuda com o pai que tenho.
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O Lado Escuro da Lua
RomansEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...