Parei o carro e ia abrir a porta, mas a Kay impediu.
-Melhor lembrar algumas coisas antes – Ela falou.
-Outras?
-Ah, é sempre melhor – E virou para o banco de trás: - Mike, lembre que seu nome é Mike.
-Meu nome não é Mike – Oyekunle respondeu.
Puta que pariu, adotamos o Oyekunle há dois anos, e esse é o tempo que passo convencendo a Kay que o nome dele é Oyekunle.
Aliás, só o fato de estarmos na frente da escola já envolveu um convencimento. Kay dizia que aprendeu a escrever com seis anos, isso não fez a menor diferença na sua vida, por isso poderíamos muito bem mantê-lo em casa por mais dois.
-Mas não tem uma parada importante de socialização? – Perguntei, na dúvida, pois esse lance de ter filhos é novidade pra mim também.
-Ele vive socializando! Socializa conosco o dia inteiro! Socializa com a Lily e com a Emily! Tudo em um ambiente seguro.
-Cara, mas sei lá, deve ser bacana ele socializar com mais de quatro pessoas.
-E se ele sofrer bullying? Ele é uma flor delicada do deserto, ele não pode sofrer bullying!
-Kay, pare de chamar o menino de flor delicada que isso é que é bullying!
Sinto uma falta danada da minha mãe, e mais ainda depois que adotamos o Oyekunle. Primeiro, seria do caralho se ele tivesse conhecido a avó. Segundo, eu e Kay somos bem sem noção. Dois adultos de quarenta anos sem noção alguma. Meus sogros são show, mas estão longe e, apesar de terem criado quatro, são quatro pessoas tão loucas que a própria Kay confia desconfiando, saca? E nunca senti a menor insegurança em momento algum na vida. Só quando tive outra pessoa dependendo de mim, pela primeira vez em trinta e oito anos. Mas algumas coisas eu acho que ainda sei: Jardim de infância não existiria se não fosse necessário e mudar o nome do moleque é uma palhaçada.
-É isso aí, Oyekunle, seu nome não é Mike – Virei pra trás. – E Oyekunle é um nome maneiro pra caramba, e por que?
-Porque é o nome do meu país e a minha mãe escolheu pra mim – ele respondeu, e eu vi pelo canto dos olhos que a Kay abria a boca em um "O" afrontado perfeito.
-E se falarem que é diferente, o que você responde?
-Que é um nome da Nigéria e, na Nigéria, John também é um nome diferente.
-Isso aí – estendi a mão para ele fazer um hi five. – Então vamos em frente com isso.
-Espera – Kay impediu que eu abrisse a porta de novo.
-Ele vai se atrasar.
-Não estou emocionalmente preparada! Cadê os meus florais?
-Kay, assim ele vai ficar assustado achando que o estamos mandando pra um inferno – Cochichei.
-E não estamos?
Achei melhor abrir a porta e sair de uma vez. Se fosse depender da Kay, ficaríamos naquele carro até a hora da saída da escola, e com o Oyekunle sentado no banco de trás. Mas é uma puta situação, sabe? Você nem lembra mais de quando estava no jardim de infância, lembra que sobreviveu à escola, que teve uns dias sensacionais e outros bem merdas, que conheceu um pessoal que viraria seus melhores amigos e outro que transformava sua vida num tormento. Mas beleza, terminou, você se tornou um ser humano decente e sem trauma algum. Daí chega a vez do seu filho. Na mesma hora, você só lembra dos dias merdas e dos caras que te atormentavam. Some a isso o fato do seu filho pertencer a uma minoria étnica e ter um nome que só outros dois no Reino Unido devem ter, e por mais que você seja firme, dá uma puta vontade de convencê-lo a dizer que seu nome é Mike.
Abri a porta de trás e desafivelei o Oyekunle da cadeirinha, enquanto Kay inspecionava a sua mochila pela milésima vez. Meu olho bateu distraidamente no seu interior.
-Isso é um celular?
-Claro.
-Por que ele vai levar um celular pra escola?
-Ele pode ficar com saudade, pode querer falar com a gente. Mike, nós estamos na discagem rápida, tá? É só segurar o número. Você segura o um, que é primeiro lugar e mais importante, é a mamãe. Dois é o papai. Mostra qual o número um pra eu ter certeza que você sabe.
-Kay, ele não pode usar celular na escola.
-Como você sabe?
-Porque não faz sentido! Me dá o celular.
-Não!
-Kate...
-Ah, merda.
Kay colocou o celular na minha mão, enquanto o Oyekunle nos encarava, e sei lá, mas ele parecia meio assustado. Não posso culpa-lo. Eu também estaria.
-Oyekunle, vai ser superbacana, como a gente conversou. Vai ter um monte de crianças da sua idade para brincar, e no fim do dia a gente vem te buscar, tá bom? E, qualquer problema, a professora liga pra gente e a gente vem antes.
-Que problema? – Oyekunle e Kay perguntaram juntos.
-Sei lá, qualquer problema. Que não vai ter. Mas se tiver. Mas não vai ter.
-Por que você está repetindo tanto que não vai ter problema se não vai ter problema? – Kay perguntou.
-Porque não vai ter – respondi e ajudei o Oyekunle a sair do carro.
Caminhamos com ele até a porta da escola, onde a professora recolhia os alunos. Percebi que a Kay tentava espiar por trás dela para ver se via algo fora do normal acontecendo nos corredores. Segurei uma risada e espiei também. Sei lá. Vai que.
-Oi, Oyekunle! – A professora falou, simpática.
-Mike – Kay corrigiu.
-Oyekunle – falei por cima e me abaixei – Tchau, cara. Não faça nada que eu não faria.
-Hã?
-Apenas divirta-se, tá?
-Tá.
Oyekunle me deu um beijo no rosto, depois beijou a Kay e segurou a mão da professora. Demos dois passos, nos viramos e vimos que ele dava "tchau" com a outra mãozinha. Uma puta mãozinha pequenininha do caralho.
-Todos os pais fazem isso, né? – Kay falou, com voz de quem ia chorar.
-Acho que todos.
-Não somos seres humanos horríveis.
-Acho que não.
Ainda que eu me sentisse um merda abandonando meu moleque pra trás. É bom que ele se divirta mesmo. Primeiro que falar qualquer coisa do fato de ele se chamar Oyekunle vai ter de se ver comigo na saída. Talvez a gente devesse ter mesmo mudado o nome dele pra Mike.
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Este é o último POV da Semana do Vince. Farei uma breve pausa, e os POVs retornam dia 14 de fevereiro :)
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...