(1979) Renata: Grito de Independência

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Obrigada, loja de biquíni, você me sustentou para que eu tivesse inúmeras noitadas, pagou por bem menos roupas que eu gostaria, me tirou de casa para que eu não esganasse alguém, mas agora estou formada e vou procurar um emprego de verdade.

Sentei muito animada à frente da máquina de escrever que havia sido do papai para fazer meu primeiro currículo de mulher moderna, formada e independente. Quatro anos sentada em uma sala cheia de homens (não estou exatamente reclamando dessa parte, exceto pelo fato de que isso mostra alguma coisa muito errada, tradicional e patriarcal com o mundo em que vivemos), aturando todo tipo de cantadas (dos homens) e comentários machistas da insuportável da minha irmã, dividindo o meu tempo entre trabalho e faculdade e tendo de passar a madrugada acordada para fazer as provas virada no dia seguinte, formatura, primeiro lugar da turma, mamãe chorando emocionada, dizendo que o papai deve estar muito orgulhoso lá no céu... E caramba, deve estar mesmo. Eu sei que eu estou aqui na Terra.

Sentei, comecei a fazer o currículo, joguei fora mil folhas porque, por mais que catasse milho, eu sempre cometia uma porcaria de errinho, e então mamãe veio me pedir para ajudá-la a arrumar a casa para o almoço de domingo.

Eu quero sair daqui. Eu tenho que sair daqui. E o principal motivo é o almoço de domingo e a minha família.

Falando assim, parece que eu tenho uma família enorme, e não é verdade. Papai morreu há dois anos, o que sim, é trágico e triste, mas não chega a ser surpreendente porque ele estava velho e, pelo menos motivo, não sei por quanto tempo mais terei a minha mãe. É que eu sou filha temporã, inclusive já houve ocasiões em que me perguntaram se o papai era o meu avô. Eles são gente boa, demais até, só que apenas quem tem pais muito mais velhos sabe pelo que já passei. Nunca pude fazer nada, nunca viajava com os amigos, ia às festas escondido e provavelmente a mamãe acha que eu ainda sou virgem. Não era culpa deles. Bom, quando eu era adolescente, eu achava que sim e que tinha os piores pais do mundo, mas agora que estou mais velha eu sei que é só diferença de geração, sabe? Eles foram adolescentes milênios antes de mim e, pra piorar, colocaram no mundo a criatura estranha que é a minha irmã. É basicamente por causa dela que quero muito sair daqui.

Como disse, sou temporã. Minha irmã tem nove anos a mais que eu e nasceu velha. Casou com outro velho e teve uma filha velha. Aliás, tenho muita dó dos velhos do marido e da filha, porque a minha irmã é velha amarga, sabe? Quando eu era bem pequena, eu a achava incrível, mas acho que só porque faz parte das irmãs mais novas ver as mais velhas como um espelho do que elas querem ser quando crescer. Me levou um certo tempo para perceber que a Cecília não gostava de mim. Que, quando ela me pegava com os meninos da rua, ela me denunciava pros meus pais não por preocupação, mas por maldade. Que, quando eu ficava de castigo, ela tinha prazer em montar guarda na porta do meu quarto para ter certeza que eu não sairia nem um segundo antes da hora. Ah, porque ainda tinha disso: Quando eu conseguia comover os meus pais, ela era a primeira a se certificar que eles não cederiam.

Acho que eu era a pessoa mais feliz e emocionada no casamento da Cecilia, pois eu tinha a ilusão que isso a tiraria do meu pé. O problema é que vários dos fatos narrados acima aconteceram depois que ela casou, a maioria aos domingos, por causa do maldito almoço. Ela vem com o marido velho e com a filha velha, depois que os três velhos haviam ido à missa. Marido velho conversava sobre negócios com o papai, agora que o papai morreu ele só lê o jornal, minha irmã velha repete o sermão da missa in-tei-ro, e filha velha tem direito a uma fatia fina de rocambole depois do almoço, embora às vezes eu veja a mamãe lhe dando mais escondido. Aqui entre nós, eu também faço isso, em parte para me vingar da Cecilia.

Mas eu tenho pena da minha sobrinha. Muita mesmo. Para começar, ela se chama Maria de Lourdes, o que lhe diminui bastante as chances na vida. O que uma pessoa chamada Maria de Lourdes pode realmente fazer de incrível? Segundo, depois do que eu passei e passo como irmã mais nova, não consigo conceber o que ela passa como filha. O que vai ser a adolescência dessa menina, meu Deus? Provavelmente vão lhe arrumar um casamento arranjado e ela vai ficar em casa cozinhando, tendo filhos e levando chifres do marido por toda a eternidade.

Foi pensar nisso que a minha garganta foi fechando, fechando, fechando... E eu decidi que sair de casa não era suficiente, pois eu ainda precisaria vir aos almoços de domingo. E, se cruzasse com a minha irmã na rua fazendo qualquer coisa que não fosse aceitável para uma mocinha de família, eu seria delatada.

Então, depois que a Família Velha foi embora, olhei o globo no escritório do papai por um bom tempo. Esperei a mamãe terminar de assistir ao Fantástico e sentei com ela no sofá para dizer que eu ia embora para a Europa. Não perguntei, apenas informei.

-Mas o que você vai fazer na Europa? – Mamãe perguntou. Acho que ela não havia entendido muito bem.

-Vou morar lá. Tem um monte de gente que faz isso e ganha muito dinheiro entregando pizza, lavando banheiro...

-Você acabou de se formar em contabilidade, o que você vai fazer entregando pizza e lavando banheiro? Renata, seu lugar é aqui!

-Eu preciso, mamãe! É só durante um tempo. – Mentira. Não tenho a menor intenção de voltar. – Eu tenho umas economias e eu nunca viajei pra fora! Mereço passar um tempo em outro país agora que me formei, e me formei tão bem, você não acha? Como um presente?

-Acho que não tem problema, se for só uma viagem... E se você não lavar banheiros.

Quero deixar algo claro: Ela estava falando com uma mulher de vinte e dois anos que trabalhava e pagava pelos próprios luxos desde os dezesseis. Mas, conhecendo-a como a conheço desde que nasci, resolvi fazer a santa:

-Então eu posso?

-Vá lá, pode. Mas deixe que eu converso com a sua irmã sobre isso.

Como se tivesse passado pela minha cabeça pedir permissão para a Cecília.

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Esse POV faz parte da Semana da Renata, que acontece do dia 27/07 ao dia 02/08 no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora