(1986) Singe: Fala sério, o único feio?!

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Querido diário,

Para contar o dia de hoje, primeiro vou ter que falar sobre a Trisha. Aliás, não preciso, mas eu quero.

Trisha é minha melhor amiga. Sempre foi, a vida inteira. Éramos vizinhas e crescemos juntas, íamos às festas, nos juntávamos para recortar revistas e colar as fotos e as letras na agenda, para fazer títulos, sabe como é? Era como um diário que eu pudesse mostrar pros outros. A gente vivia grudada, e estamos tentando manter isso agora que passei pra escola de música, mas anda meio complicado. Primeiro, porque ela está morando em Cambridge. E segundo porque ela decidiu que não me entende. Na verdade ela só não entende a minha música, mas isso é mais ou menos oitenta por cento do que eu sou.

Ela diz que acha lindo mulheres que tocam algum instrumento, mas que eu fui escolher bateria, o mais masculino de todos. Diz que não sabe como eu posso gostar de heavy metal, que isso é música para homens suados que cheiram a cerveja. Mas, sabe, diário, eu também gosto muito de homens suados que cheiram a cerveja. Embora, é claro, eu seja muito cheirosa.

A mamãe é psicóloga. Ou era, pelo menos, pois ela não trabalha desde que ficou grávida de mim. Como boa psicóloga, ela tem mania de explicar tudo, e diz que eu gosto de barulho e homens suados para compensar meu lado santinho de anjinho. Não sei se ela está certa, tenho certeza que não sou tão santa assim, mas aceito a explicação enquanto não encontrar outra melhor.

Fiz essa enorme introdução porque a Trisha veio passar o final de semana comigo, e já havia programado tudo: Iríamos ao festival de cinema, faríamos compras, tudo bem Trisha & Singe dos velhos tempos. Só que, quando estávamos andando com nossas sacolas, encontramos esse cara super alto, com uma camiseta dos The Stooges, distribuindo panfletos. A Trisha ia passar direto, mas eu peguei o meu, parei um segundo para ler, e ele aproveitou:

-Gosta de rock? A gente vai tocar essa noite no Crobar.

Ah, que maldade comigo. Olhei o panfleto, que era bonitinho e bem feitinho, mas pobrinho, sabe, xerocado, e imediatamente o meu lado mau que a mamãe falou começou a gritar com a minha menina santinha e anjinha. Principalmente porque, se eu sou mesmo um anjo, o nome da banda era um chamado do destino.

-Angels of Hell? Você toca o quê?

-Baixo.

-Legal, eu toco bateria.

-Então, aparece lá.

-Vou ver com a minha amiga e de repente apareço sim.

O menino olhou para nós duas, avaliando, o que acontece bastante. É que nós não somos nada de se jogar fora, e sempre conseguimos umas olhadas. Ele deu um sorriso simpático e bem agradável, disse que esperaria pela gente lá, e voltou a dar os seus panfletos.

Ai, eu queria ir. Queria tanto ir! Mas qual a chance de eu conseguir enfiar a Trisha no Crobar?

-Se ele desse um corte naquele cabelo, até ficaria bem bonitinho - Trisha falou.

-Ficaria um gato! - Resolvi incentivar. - E gostou de você.

-É? - Ela falou, tentada.

-É. E uma coisa que você não sabe sobre heavy metal, é que oitenta por cento de quem curte é homem.

-Mas todos suados, cheirando a cerveja e com o cabelo sem corte.

Estava começando a ficar desanimada, achando que terminaria a noite no cinema, quando Trisha deu de ombros e falou:

-Ah, que seja. Vamos ver como é isso.

YES!

Demoramos milênios para sair de casa. Trisha disse que estava em crise de vestuário, por não saber o que vestir, e na realidade ela tinha razão. Não havia nada que ela possuísse que não brilhasse ou não fosse de todas as cores do arco-íris. Eu tive de lhe emprestar a camiseta, o casaco e até a calça jeans. Trisha falou que eu sou a única pessoa no mundo que se veste melhor de dia que à noite, e eu ri porque é verdade. De dia eu me visto como uma santinha anjinha, à noite uso roupas de me esfregar em homens suados.

Quando chegamos, o Crobar estava lotado. Pedimos bebidas no bar, coisa que é sempre rápida, pois nossos lindos olhos costumam agir em nosso favor, e depois a segurei pela mão e comecei a arrastá-la na direção de um som enlouquecedor que vinha do palco. Enlouquecedor mesmo. Era rápido, era agressivo, tinha uma técnica afiadíssima, era absurdamente bom. Apontei para a Trisha o cara da rua, que estava tocando baixo, meus olhos percorreram o resto da banda, parei no guitarrista e fiquei ali. Era o meu homem suado cheirando a cerveja. Ele era sensacional. Ele tocava com uma maestria que era difícil acreditar que só havia uma guitarra na banda, e ao mesmo tempo com uma facilidade que parecia que, se eu pegasse uma guitarra, ia conseguir repetir tudo o que ele fazia, acorde por acorde. Seus dedos voavam pelas cordas em um solo espetacular, e foi naquele momento que gritei para a Trisha, para ser ouvida por cima do barulho:

-EU QUERO AQUELE!

-QUEM?

-AQUELE!

-QUEM?!

-AQUELE, O GUITARRISTA!

-AQUELE QUE A GENTE CONHECEU NA RUA?

-NÃO, O OUTRO!

O queixo da Trisha caiu. Ela olhou para os lados, olhou para o palco de novo e apontou.

-AQUELE?!

-É!

-FALA SÉRIO, O ÚNICO FEIO?!

-VOCÊ ACHA FEIO? EU NÃO ACHO - Impossível achar alguém que tinha aquele talento feio.

-VÁ EM FRENTE! ELE PROVAVELMENTE ESTÁ IMPLORANDO PRA DORMIREM COM ELE!

Quando acabou o show, nem dei tempo da Trisha pensar. Peguei-a pela mão e comecei a rodar pelo Crobar atrás deles, e fui encontrá-los ao lado do palco, guardando os instrumentos, o guitarrista colocando a guitarra no estojo com um cigarro preso no canto da boca. Odeio cigarro. Odeio, odeio, odeio. Mas o achei tão lindo e tão sexy que fiquei até com medo de ter suspirado em voz alta. Havia umas duas garotas circulando e achei melhor ser rápida.

-Oi! - Disse pro baixista. - Lembra da gente?

Ele me viu e abriu um sorriso feliz, como se estudássemos juntos desde o jardim de infância. Aposto que, com essa simpatia toda, ele não é londrino. Não pode ser, apesar de não ter nenhum sotaque de qualquer outra região da Inglaterra.

-Ei, que legal que vocês puderam vir. Gente, essas são as minhas amigas... - Nossa, amigas! Só pegamos um panfleto da mão dele mais cedo. Quero dizer, eu peguei. A Trisha o ignorou até perceber que ele ficaria bem bonitinho com um corte de cabelo. Mas ele não tinha como continuar a frase porque não sabia os nossos nomes.

-Eu sou a Singe, essa é a Trisha.

-Vince, Tom, Mick - ele apontou o guitarrista. - Ah, eu sou o Eddie.

Amanhã à noite tenho um encontro com a minha alma gêmea Mick. Não sei se ele estava mesmo implorando para que dormissem com ele. Se estava, não pareceu. Mas trocamos telefones e ele vem me buscar. Acho que estou muito perto de ficar seriamente apaixonada.

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Esse POV faz parte da Semana da Singe, que está rolando de 13 a 19 de julho no grupo Realidades Paralelas da Mari



O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora