(1987) Mick: Até que a morte nos separe

105 24 7
                                    

Ser o mais velho de cinco irmãos é legal porque você tem uma porrada de gente pra mandar. É uma merda porque você tem uma porrada de gente pra tomar conta. Lá em casa, todo mundo tinha a sua função. O Bruce ficava com os quartos, o Adie dava uma mão na cozinha, o Johnny arrumava a sala, o Danny foi sacaneado e colocado no banheiro. Eu, como era o mais velho, fazia o que tinha de ser feito na rua e fiscalizava a porra toda junto com a minha mãe. Aliás, com mais rigor que a minha mãe. É que, assim que a gente tivesse terminado, tava liberado pra ir pra rua, jogar bola ou, no meu caso, me trancar com meu violão no quarto e ouvir música. Meu pai chegava no fim do dia, largava o sapato do lado da porta, calçava o chinelo, abria o jornal e começava a encher os cinzeiros de ponta de cigarro, falava mal da política e dos hippies até a hora do jantar. Sei dessa parte porque tinha que sair do quarto pra ajudar a botar a mesa. Essa rotina nos rendeu o apelido na rua de As Meninas McCallen. Adie quebrou o nariz de meia dúzia por causa disso, mas eu não me incomodava tanto. É que na casa dos outros moleques da rua não devia ter cheiro de pão assando no forno. Os outros garotos não inventavam músicas para sacanear os irmãos enquanto espanavam alguma coisa. Eles também não passavam o dia conversando com a mãe deles, contando toda e qualquer merda que aconteceu na escola e depois dela.

E, de alguma forma, achei que a vida deveria ser assim. Que eu ia me casar, ter uma família, e não precisava botar todo mundo pra limpar, mas a gente ia passar tempo junto, como família deve ser, saca? Como a minha era.

Só que, no meio da faculdade pra me tornar o meu pai, eu vi um cartaz no quadro de avisos procurando um guitarrista. Daí podia chegar em casa no final do dia, largar o sapato do lado da porta, calçar o chinelo e abrir o jornal, ou podia fazer a outra coisa que eu amo desde moleque e na qual sou bom pra caralho.

Resolvi tentar a outra coisa. Tava na faculdade mesmo, se não desse em nada, voltava para o plano original.

Meus amigos vivem me zoando porque vou a igreja todos os domingos. Mas caralho, como não ter fé em uma força poderosa pra cacete que, ainda por cima, escolheu justo a cabeça de um cara comum como eu pra colocar a mão e dizer "Vai em frente, o que você quiser, você vai ter"? Porque puta que pariu, só pode ser Deus por trás disso. Eu não achei uma banda, achei irmãos pra vida inteira. Fizemos todo o roteiro da ralação, não estávamos indo muito longe, mas eu tava feliz pra caralho, tanto que começava a me questionar se não era hora de dar um chute naquela minha primeira opção de vida lá, quando conheço a mulher mais linda de todo o mundo. O Eddie tinha falado com ela e com a amiga na rua e as chamado pra nos ver tocar no Crobar (Eddie tem mania de desenhar uns panfletos quando a gente toca e sair distribuindo por aí), e quando estávamos guardando os instrumentos elas se aproximaram. Tom foi chegando na mais bonita, e ela o deixou no vácuo e chegou em mim. E caralho, funciona mais ou menos assim: você passa a vida levando toco, até pegar uma guitarra, e aí tem uma fila querendo dar pra você. Mas a Singe não era assim. Certeza que eu a teria comido qualquer hora, aliás eu a comi a qualquer hora, mas ela era diferente. Era doce, era meiga, e de repente estou sendo injusto pra cacete e todas tenham sonhos, mas os da Singe eram os mesmos que os meus. O tempo todo eu achando que tinha de fazer opções, abrir mão de uma coisa para ter outra, e quando me assentei em uma vida Deus me mandou a outra para me achar e mostrar que dá para ter tudo.

Não sou um cara romântico, mas fiquei de quatro por aquela menina.

O que me levou ao dia de hoje.

Aproveitei que os meus pais estavam na cidade, marquei um brunch com eles e com a Singe, nós dois com a cabeça explodindo de ressaca e anunciei que a havia pedido em casamento.

Os olhos da minha mãe foram imediatamente pras mãos da Singe.

-Ainda não tem o anel - Singe falou. A menina sorria tanto que parecia aqueles desenhos animados japoneses, sabe?

-Eu pedi ontem à noite, na festa de formatura. Mas vamos comprar o anel hoje - Expliquei. É que meus pais são tradicionais pra caralho, e acho que nada pra eles estaria oficial enquanto não houvesse anel.

Os dois ficaram mudos. Devem ter se passado uns segundos só, mas foi constrangedor pra cacete.

-Quais são suas perspectivas? - Meu pai perguntou. Aê, pai, o assunto aqui é ca-sa-men-to. Seu primogênito, seu primeiro filho a se casar, então que porra é essa de perspectiva? - Singe, você ainda está estudando, certo? Mick, você já arrumou um emprego?

-Eu tenho um emprego. - Puta que pariu. Essa merda de novo, não.

-Tocar guitarra não é um emprego. Quando você vai começar a distribuir seu currículo?

-Pai, eu me formei ontem, caralho! Desculpe o palavrão, mãe.

Minha mãe é bem quieta quando está perto do meu pai e fala apenas quando necessário. Hoje ela achou que precisava intervir:

-Donald, eles já estão morando juntos mesmo.

-Eles são duas crianças!

-Eu tinha a idade deles quando me casei. E é melhor oficializar que viver em pecado.

-Morar junto, não deu certo, vai cada um para um lado. Casamento, não deu certo, tem crianças, tem divórcio...

-Vai dar certo! - Singe falou, e ela já estava com lágrimas nos olhos. Singe chora por qualquer coisa, dez vezes por dia. Isso acaba comigo em todas as dez.

-Vocês não têm como saber! Casamento precisa de estrutura! Tem gastos! Tem contas! Precisa de emprego de verdade!

-Eu não chamei vocês aqui pra pedir permissão ou opinião - falei, puto. - Vim só comunicar. Vamos, Singe.

Levantei da mesa e, como ela não me acompanhasse, chamei de novo: "Vem, Singe!"

Eu a peguei pela mão e a levei pra fora, enquanto escutava meu pai praguejar à mesa e a minha mãe me chamar. Caralho, e nem havia comido. Tava varado de fome.

Chegamos à calçada e Singe começou a chorar, exatamente como eu sabia que ela faria:

-Ei, não fica assim - Eu a abracei. - Ainda hoje, minha mãe liga pra saber a data e perguntar como pode ajudar. Conta duas semanas, e meu pai liga dizendo que vai bancar a festa,

-Eles me odeiam - ela soluçou.

-Não odeiam, só são esquisitos. Vai dar certo, tá?

Singe fez que sim com a cabeça. Puta que pariu, que menina linda.

E sério, nunca tive tanta fé que a minha vida vai dar certo. Só pra constar, minha mãe acabou de ligar perguntando pra quando marcamos a data.

---

Esse POV faz parte da Semana do Mick, que acontece de 21 a 26 de julho no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora