(2008) Julia: O Amor Acontece

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Uma vez participamos de um exercício na escola em que tínhamos de nos descrever. O que falei sobre mim:

-Uma menina.

Sofri todo tipo de bullying depois disso. Bullying que eu, de certa forma, já sofria. Sou comum demais para ter algo para dizer sobre mim além de "uma menina". E comum demais para me destacar de forma positiva na escola. Só o que sempre chamou a atenção sobre mim é o fato de ser muito alta e muito magra, preferir passar a maior parte do tempo lendo e vendo filmes, e saber uma quantidade incrível de fatos que, embora interessantes para mim, não apresentam muito interesse para o resto do mundo.

Pois é, sou isso mesmo. Apenas uma menina. Que tirava boas notas, tinha uma família legal, uma melhor amiga, um cachorro, alguns namoradinhos ao longo dos anos, que ia com os pais à missa aos domingos. Uma menina. Nunca tive muitas ambições, nunca achei que minha vida seria extraordinária. E então eu conheci o Victor.

No fim da primeira semana da faculdade, houve uma festinha para os calouros. Não sou muito de festas. Não as odeio, mas decididamente não sou do tipo que precisa se socializar para ter companhia. Acho que eu mesma sou uma ótima companhia para mim. Mas Lucy, minha colega de quarto no alojamento, acha que ela não se acompanha, eu não a acompanho, aliás, quinhentas pessoas não seriam companhia suficiente. Como estávamos em vias de nos tornarmos próximas após uma semana nos trombando em um quarto apertado e desarrumado, ela insistiu e fui com ela. Em pouco tempo, ela já havia participado de todas as brincadeiras de bebida da festa e eu começava a temer por sua integridade, e estava junto a ela em uma roda de garotas que pareciam todas interessadas no mesmo rapaz.

-Quem?

-Você é a única que não reparou? Aquele moreno lindo, ao lado do barril de cerveja! Se não estivesse aqui, diria que é modelo.

-Ator.

-Modelo e ator.

Corri os olhos até o barril de cerveja e o vi. Aliás, era a segunda vez que eu o via. Nós tínhamos conversado rapidamente em um chá antes das aulas começarem e era simplesmente impossível esquecê-lo pois, sim, o homem era lindo, do tipo que você não vê todo dia na rua. Nossos olhares se cruzaram, ele deu um meio sorriso e começou a andar na nossa direção. Meu Deus, que olhar! Havia algo meio felino nele. Não havia nada naquele homem que não fosse perfeito. O nariz parecia pertencer a uma estátua da Grécia antiga. Ele era muito alto, o que é sempre bom, pois sou alta também, e... Nossa, já estava comparando as nossas alturas para saber como pareceríamos quando saíssemos juntos.

As meninas abriram a roda e ficaram olhando, hipnotizadas, quando ele se aproximou e sorriu para mim. Sim, era um sorriso magnífico.

-Oi, Especialista em Vlad III.

Incrível. Ele não só se lembrou de mim, como se lembrou da nossa conversa durante o chá. As garotas, ainda mudas, olharam para mim, esperando o que eu responderia.

-Oi, Filho Festejado das Terras da Rainha.

-Hã? – Lucy falou, ao nosso lado.

-Você pode me chamar de Victor. "Filho Festejado das Terras da Rainha" é longo demais para você salvar meu número no seu celular.

-Quem disse que... – Comecei, mas Lucy enfiou a mão no meu bolso e começou a digitar no meu celular:

-E esse número seria...

Victor riu, completamente hipnotizante. Tirou o celular das mãos dela e ele mesmo salvou o meu número. Me entregou o aparelho de volta e saiu.

Saiu!

Achei muito arrogante. Claro que não ligaria. Até porque, com aquele olhar e aquele sorriso, eu teria sérios problemas para conseguir me concentrar em um assunto e conversar com ele.

Ainda naquela madrugada, lhe mandei uma mensagem de texto, que ele não demorou muito para responder. Fomos ao cinema e depois jantamos em uma lanchonete no domingo seguinte.

Foi um encontro bastante surpreendente. Se tudo o que eu possuía para dizer sobre mim é que era uma menina, Victor possuía um mundo inteiro. Em dado momento, se ele não tivesse mostrado as fotos do seu celular, eu acharia que estava mentindo. Em dezenove anos, ele parecia já ter feito de tudo e visitado todos os pontos do globo. Logo que terminamos de conversar sobre o filme, ele quis saber sobre mim e, como sou apenas uma menina, tentei prolongar o assunto perguntando sobre a vida dele. Eu sou uma americana típica do Meio-Oeste que tinha um cachorro, lia bastante e ia à igreja aos domingos com meus pais. Victor é um francês de ascendência anglo-brasileira e a moça maluca que estava com ele no chá em que nos conhecemos é realmente maluca e uma amiga da família. Minha mãe é dona de casa e meu pai é advogado.

-E os seus pais? O que fazem?

-Meu pai tem um estúdio e é baterista.

-Que legal! Sua mãe também trabalha com música?

-Aham. Sabe o Canções da Minha Vida, que vai estrear na Broadway?

-O musical?

-Sim. É ela.

-Ela trabalha nele?

-Não, ela o compôs.

Victor confessou que usa o sobrenome Gonzaga porque o Lewknor sempre dá início a uma longa conversa que gira muito sobre os pais e muito pouco sobre ele, o que para mim não faz sentido, pois sua vida é fascinante por si só. Também fiquei impressionada com a quantidade de informações que ele não se importava de dar para alguém que havia acabado de conhecer. Victor disse que foi criado por seu pai adotivo até os sete anos, que foi quando conheceu seu pai biológico, que por incrível que pareça era o baterista da sua banda preferida. Fiquei com vergonha de perguntar se sua mãe era groupie na época, mas ele mesmo falou que os dois haviam namorado, mas sua mãe era uma toxicômana em recuperação e foi embora da Inglaterra quando estava grávida.

-Isso não é o Canções?

-Sim, é autobiográfico. Como você pode ver, Julia, não há muito que eu possa esconder da minha vida. Minha família facilitou o seu trabalho e não tenho segredo algum.

Ele sorriu. Eu sorri de volta. Depois de um bom tempo olhando aquele sorriso, percebi que devia estar parecendo uma louca e respondi:

-Não é bem assim. Sei quem são seus pais. Quem é você?

-Um menino muito longe de casa comendo um sanduíche meio seco com uma menina linda.

Sou apenas uma menina. Como as representantes da minha espécie, e ainda que não seja desligada da realidade, fui injetada na fôrma com uma boa dose de romantismo. E, como menina romântica, me vi diante do nascimento do meu conto de fadas moderno.

O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora