(1986) Vince: After all it's just another brick in the wall

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O legal de você trabalhar em um restaurante é que você tem folga na segunda-feira. A merda de você trabalhar em um restaurante é todo o resto. Mas cara, o legal é legal pra caramba. Tipo, hoje é segunda e passei a tarde largado de bermuda em casa jogando videogame. É feito uma tremenda gargalhada na cara do sistema e das pessoas que acordaram cedo pra ralar. Claro que, nos finais de semana, quem rala sou eu, e o sistema morre de dar risada da minha cara enquanto tô com meio braço enfiado em uma panela de gordura e todo mundo tomando todas.

Aí, foi mal, mundo, mas adoro segundas-feiras. Acordei cedo, fui malhar, comprei um café da manhã bem legal, voltei, tomei banho, comi bem pra caralho, respeitando toda a pirâmide alimentar, liguei o videogame e passei o resto do dia sentado e enchendo o cinzeiro de ponta de cigarro. Contraditório, eu sei, mas é meu dia de folga, porra. A única interrupção foi depois das quatro. Outro dia tive uma conversa muito maneira com a Malu, e pedi pra ela passar aqui hoje. Comentei por alto depois com o Tom que ela viria pegar o The Wall, e o Tom falou que claro que ela não ia aparecer.

-Por que não? – Perguntei, espantado.

-Aquela menina é uma freira. Não vai vir achando que, se atravessar a porta, vai engravidar.

Amo o Tom pra caralho, mas ele é um babaca.

A Malu é mais quieta que todo mundo, sim. Ela fala pouco, é reservada, tem que se respeitar isso, certo? E cara, como é despretensiosa. Nisso, sim, eu me amarro. Com tanta gente por aí tentando aparecer, a menina é um puta gênio com aquela guitarra e não se acha mais por isso, sabe? Aliás, sei nem se ela tem consciência do tanto que é genial. Mas ok, é tímida, meio apagada, mas é inteligente e quero conhece-la melhor. Não a pegaria, mas gostaria de conhece-la melhor. Acho que essa é a maior diferença entre mim e Tom. Se ele não quer comer, não vale a pena o esforço.

E a garota é interessante. Se eu escrevesse tão bem quanto gosto de ler, certeza que tinha um personagem pra ela. Ela tocou o interfone, fui abrir a porta, e de repente começou a gaguejar no corredor, pedindo desculpas pelo incômodo, podia voltar outra hora, lançando uns olhares meio de animal acuado pra sala... Porra, eu a havia convidado! Como assim, estava incomodando e poderia voltar outra hora? Ela perguntou "O que foi?", e só então me toquei que a estava encarando.

-Leva a mal não, mas, se não tivesse conhecido a Kate, acharia que era uma coisa cultural. Você é sempre assim?

-É que fomos criadas de maneiras muito diferentes – Ela respondeu, encarando o chão.

Eu a chamei pra jogar videogame porque, sei lá, era segunda-feira e eu ainda não tinha tirado isso do sistema. Malu arregalou os olhos. Não com medo. Com assombro e um pouco de encantamento. Cara, vai dizer que não vale a pena conhecer essa menina?

-Como se joga? – Ela perguntou.

Segurei a vontade de rir. Acho que a Malu é a única pessoa que já chegou à nossa idade sem ter jogado videogame. Bom, em um país com acesso a eles. Eu expliquei como funcionava, e passamos umas duas horas jogando. Ela era ruim pra caralho, mas foi a primeira vez que eu a ouvi dar uma gargalhada, e fiquei me perguntando por que ela não fazia isso sempre, porque seu rosto se transformava e ela se tornava até um pouco atraente. E então me toquei que ela não é freira, não é reservada, não é diferente. Ela, na verdade, são duas. E, quando disse pra ela que ela tocava com raiva, e toca mesmo, é porque ela toca com a Malu de dentro, puta da vida e louca pra sair da prisão.

Paramos porque ela decidiu que seis da tarde era tarde demais e deu um puta pulo da almofada, estilo Cinderela à meia-noite, saca? Ok, talvez fosse tarde mesmo, eu ainda tinha de ir a aula. Falei pra gente ir ao meu quarto pegar o The Wall, revirei a estante e vi que ela não me acompanhou. Dei uma chamada e, quando achei o disco e virei pra ela, ela estava parada a três passos da porta. Vai ver o Tom estava certo e ela achasse que, se entrasse no quarto, fosse mesmo engravidar. Só que ela não estava em posição de corrida, estava com aquele jeito assombrado novamente, tirou meu O Nome da Rosa e começou a folhear.

-Já leu? – Perguntei.

-Não. Quase vi o filme uma vez, mas não deu.

Tom, que chegou nesse meio tempo, escutou e, claro, teve de falar sobre a aberração que é o filme. O Nome da Rosa é um dos seus livros favoritos, ele é obcecado com história e idade média, e acha que Jean-Jacques Annaud ter transformado o livro em um filme policial com final Hollywoodiano faz parte de uma conspiração dos franceses pra foder pessoalmente com a sua vida. Concordo que o livro é muito melhor, mas o filme tem o Sean Connery, cara. Nada que tenha o Sean Connery pode ser uma merda.

Fui levar a Malu até a porta, e o Tom estava com uma menina que eu acho que a gente conheceu ontem no Revenge. Sei lá, é meio difícil lembrar das meninas que saem com o Tom, e na verdade nem vale a pena, porque elas somem rápido. A oficial no momento é a Anna, mas "oficial" não significa "exclusiva", e essa é outra diferença entre nós dois. Curto essa história de ter uma namorada, acho legal pra caramba estar em um relacionamento, mesmo com toda a dor de cabeça que eventualmente aparece.

Me despedi da Malu e fui trocar de roupa pra faculdade, mas, antes de ir, Tom perguntou a ela sobre a banda que as meninas estão montando. Tomara que dê certo. Engraçado que nem tanto pela Kay, porque ela é uma puta menina especial que vai se dar bem em qualquer coisa que tentar. Aquela ali veio ao mundo bem equipada. Mas por causa da Malu, ela precisa disso. Acho que a ideia de lhe emprestar o The Wall foi de gênio. Alguém, ou ela mesma, construiu um muro à sua volta. Vai ser bem legal quando ela começar a derrubar os tijolos.

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Esse POV faz parte da Semana do Vince, que está acontecendo até o dia 5/7 no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora