(2011) Baby: Ganha quem permanece

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Legal. Tô de castigo outra vez.

Papai diz que nenhum dos meus irmãos lhe dá tanto trabalho, o que acho totalmente impossível de ser verdade. Tudo bem que o Dave parece um velho, o Les Paul mal consegue juntar duas palavras em uma frase e a gente quase nunca vê o Diego, mas o Josh é uma peste! A diferença é que o Josh é um sonso do caralho e sempre se safa. Tipo, tô de castigo porque o papai descobriu o meu truque de beber sua vodca e repor com água antes de ir para as festas. Quem me ensinou? O Josh! Daí o papai ficou histérico, me deu o esporro da minha vida, me mandou pro quarto até o final dos meus dias, e o Josh olhando, feito o cretino que é. Devia ter entregado o filho da puta. Agora há pouco o Josh veio aqui no quarto, eu achando que ia me agradecer, ele veio me chamar de burra.

-Hã?

-Porra, Baby, a essa altura só deve ter água pura naquela garrafa! Tem que rolar uma rotatividade!

-Mas o que eu posso substituir além de vodca?

-Bota chá no uísque.

Cretino. Como se o papai não fosse perceber. Ele é todo neurótico com o uísque dele.

É um saco ser a única mulher no meio de um bando de irmãos e com um pai surtado. Tem a Alex, mas ela não conta, pois é mais surtada ainda, só que de outra forma. A Alex é escritora e, quando começa com as histórias dela, eu nunca sei o que é verdade e o que é invenção. Não que ela faça por maldade, acho que a Alex seria incapaz de qualquer pensamento maldoso na vida, mas ela viaja demais! Acho que ela vai se empolgando nos casos, acrescentando coisas, e quando termina a gente sempre fica se entreolhando, fazendo força para não rir para não a magoar. Pois bem, a Alex diz que já fez as coisas mais escabrosas. Tipo, até filme pornô ela jura que tem no currículo. Só que, quando o papai me pega nas merdas, ao invés de me defender ela torce a minha orelha. O papai grita comigo, ela torce a minha orelha e grita comigo, o papai grita com ela, ela grita com o papai. Juro, dá vergonha trazer meus amigos aqui em casa. Não que eles façam isso na frente dos meus amigos. Mas a Alex é do tipo que está conversando com o carinha que você tá a fim e de repente solta um comentário sobre a performance sexual do seu pai.

Oi?

Não quero saber o que o meu pai faz na cama! Aliás, preferia achar que meu pai não faz nada além de dormir na cama!

Mas por que eu estou falando sobre isso tudo mesmo?

Ah, sim, é que ninguém me defende nessa casa, nem o Josh, que é quem inventa as besteiras.

Quando eu era pequena, eu não ficava de castigo com muita frequência, porque, obviamente, eu não ia a festas, não beijava na boca, não dava, não fumava, e uma tarde no boliche era diversão pra cacete. Mas às vezes eu pisava na bola, era mandada pro quarto como agora, e aí eu pegava um álbum de fotos de quando eu era bem criança e que meu pai me deu. Nele tem fotos da minha mãe. Quase não me lembro dela e, o que eu lembro, não sei se é memória mesmo ou se é por causa das fotografias. Sei que lembro dela quando como cerejas, e o papai disse que é por causa do perfume que ela usava. De resto, não me recordo de quase nada. Mas eu costumava olhar o álbum e pensar que, se ela estivesse viva, talvez me entendesse e não me colocasse de castigo.

O álbum ainda está aqui no quarto. Eu ainda o olho, mas não tanto, até porque já sei perfeitamente como ela era e posso vê-la se fechar os olhos. As pessoas nos comparam muito. Dizem que sou bonita como ela era, e minha mãe era bem linda mesmo. Ela era perfeita, como se houvesse sido desenhada. Não tenho o nariz de boneca dela e tenho olhos estranhos, meio alienígenas, como se eles tivessem sido recortados e colados meio tortos na minha cabeça. Eu e o Josh. O papai também tem olhos assim. E, por mais esquisitos que eles sejam, são a parte do meu corpo que eu mais gosto e mais tenho orgulho.

Dave diz que a nossa mãe era muito legal, era uma mãe incrível, mas que o papai a deixou louca. Que ele tinha casos com outras mulheres e tanto fez que ela acabou se matando, embora o próprio Dave admita que o papai não fez de propósito, que é da natureza dele e ele não podia controlar. Eu perguntei para o Josh se ele achava a mesma coisa e o Josh virou bicho. Falou que ninguém sabia o que deu na nossa mãe, que o tanto que ela foi internada, de repente podia ser louca de nascença, que todo mundo usa drogas mesmo sem ninguém para os deixar malucos, e que jogar a culpa no papai quando a nossa mãe não está nem mais aqui para dizer o que realmente aconteceu é uma injustiça do caralho.

-Mas você não fica curioso? – Perguntei.

-Não. Ela não morreu num acidente, Baby. Ela não teve a porra de um câncer. Ela escolheu não estar aqui. A gente estava no mesmo apartamento que ela e ela pulou pela janela. Foi a opção dela. A opção do papai foi ficar com a gente. Ele dá uns berros de vez em quando, bota a gente de castigo, porque ele optou por criar a gente.

Sempre que falam sobre isso, e ainda bem que é pouco, Dave e Josh quebram o pau. Josh diz que, quando o papai saiu de casa, a nossa mãe falava que ele ia arrumar outra família e esquecer a gente, e que no final das contas, olha só quem não nos abandonou, foi o papai. Dave fala que a nossa mãe era doente, e que se o papai estivesse menos preocupado em galinhar, ele teria percebido isso e a tratado enquanto era tempo. Eu não passo muito tempo pensando sobre o assunto, para falar a verdade. Acho que é porque não me lembro muito bem da nossa mãe, só tenho uns flashes, umas cenas soltas de quando ela era viva, e muitas dessas cenas nem a envolvem. O que me lembro mesmo é do papai sempre presente e, a maior parte do tempo, da Alex presente também. Acho que, se o papai fosse tão galinha quanto o Dave diz, Alex não estaria casada com ele há tanto tempo.

E, pra ser sincera, acho que ter a Alex de mãe está de bom tamanho, por mais vergonha que ela me faça passar.

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Este POV faz parte da Semana da Baby, que acontece até dia 26 de dezembro no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora