(1986) Cecilia: "Aquela carta não é uma consulta, é uma piada!"

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Abri a porta do apartamento silencioso. Antes ele era silencioso também. Maria de Lourdes sempre praticou no quarto para não me incomodar. Gosto da sua música, mas nos momentos apropriados, e Maria de Lourdes, quando não está lendo ou estudando, está tocando algum instrumento. Entretanto, nos últimos meses, o silêncio está maior e se tornou físico e palpável. Não tenho muitas amigas, não tenho mais família. Maria de Lourdes era uma companhia muda, mas era uma boa companhia.

-Dona Cecília, a correspondência está no porta-cartas.

Infelizmente, não posso dizer o mesmo sobre a empregada.

-Você comprou outro porta-cartas?

-Não, senhora.

-Você o trocou de lugar?

-Não, senhora.

-Então eu sei onde está a correspondência.

-É... – ela ficou torcendo as mãos, como se fosse idiota. O que eu não duvido que seja. – É que tem carta da Maria de Lourdes, achei que a senhora gostaria de saber.

-Eu sei ler, veria que a carta é dela – respondi, sem demonstrar a curiosidade que eu sentia.

Estranho. Eu e Maria de Lourdes costumamos nos falar por telefone, quando eu ligo para ela, uma vez por semana. Mesmo com a tarifa abusiva, nossos telefonemas não são muito longos. Basicamente, tudo o que eu preciso é ter certeza que a criei bem. Já fui jovem, mas os de hoje em dia não são como os do meu tempo, Maria de Lourdes é uma menina e nem ao menos tem seu pai por perto para defende-la. É verdade que eu sempre me encarreguei da sua educação, mas era bom saber que não estávamos sozinhas e tínhamos a quem recorrer quando precisávamos. Não podia negar a ela a oportunidade de estudar em Londres e, infelizmente, a única pessoa a quem pude recorrer foi a Renata. Fiquei entre a cruz e a caldeirinha, entre mandar a minha única filha para um alojamento cheio de adolescentes ou deixa-la morar com a minha irmã que ainda pensa que é uma. Optei por confiar que ao menos, por ser da família, Renata não a deixaria correr riscos físicos. Contra os riscos da alma, eu tinha de acreditar que a criei da melhor forma possível. E, claro, checar com uma frequência de no mínimo uma vez por semana.

Maria de Lourdes nunca me deu trabalho além de uma amiga, uma tal de Kate. Tem até nome de mulher perdida. Mas até essa parte deu certo, pois ela também está na casa da Renata que, eu espero, está de olho nas duas. Ao menos, foi isso que ela me garantiu. Não que confie na Renata, mas confio na Maria de Lourdes, ao menos para me dizer a verdade. O que me deixa inquieta é o fato de ela ser tímida e ingênua, uma criança. E crianças podem ser facilmente corrompidas. Eu sei disso melhor que ninguém.

Abri a carta para lê-la na minha poltrona ao lado da janela, e precisei reler duas vezes para ter certeza que havia lido direito. Maria de Lourdes iria para um intercâmbio cultural com autorização da Renata no dia treze...

-Que dia é hoje? – Perguntei para a empregada, para checar.

-Quarta-feira.

Quase gritei com a infeliz.

-Dia do mês!

-Quinze.

Olhei a data no topo da carta, e ela havia sido escrito dia nove, um dia depois de nos falarmos pelo telefone. Mas não era possível que aquela viagem havia sido repentina, era? Não se programa um intercâmbio cultural de repente. E, mesmo que fosse. Por que ela não me telefonou e me mandou uma carta? Não era possível que houvesse partido sem a minha autorização, minha, a sua mãe!

Peguei o telefone, mas ninguém atendia no apartamento da imprestável da minha irmã e eu não possuía seu número do trabalho. Minha cabeça começou a trabalhar ferozmente em todos os tipos de possibilidade de acontecimentos. Quem iria nesse intercâmbio? Haveria homens na excursão? Quem eram os adultos responsáveis? Professores? Coordenadores? E o alojamento, como seria?

Não é possível que a Maria de Lourdes tenha feito algo pela minhas costas, e algo temerário como uma excursão à França! Um outro país! Provavelmente foi convencida a ir por pessoas que não têm mãe nem pai como ela, mas ainda assim ela nunca fez nada sem me consultar, e aquela carta não é uma consulta, é uma piada!

Hora de tomar uma atitude. Liguei para a agente de viagens, a mesma que havia comprado a passagem da Maria de Lourdes e cujo telefone ainda estava na minha caderneta, e pedi que fizesse uma reserva no próximo voo para Londres que, para o meu desespero, é só semana que vem. Deixei a passagem de volta em aberto, e é muito provável que tenha uma companhia silenciosa quando voltar.

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Essa semana estamos lembrando o ano de 1986 no grupo Realidades Paralelas da Mari 


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora