(1986) Kate: Maria de Lourdes, seus dias estão contados

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-Dou a minha cara a tapa como ela não vai - Gigi falou.

-Dou a minha como ela vai - respondi. E dava mesmo.

Papai sempre diz que, o que eu não consigo por amor, consigo pela dor. Não é que torture alguém. Fisicamente. Mas sou boa na tortura psicológica, também conhecida como insistência até que a vítima seja levada à beira da insanidade. Foi mais ou menos assim que trouxe a Malu para Londres, e assim também que a fiz virar guitarrista da nossa banda.

-Mas se ela prefere ir ao Brasil, não é melhor deixa-la ir? - Gigi argumentou.

-Cara, fala sério, quem prefere ir ao Brasil? Passar o verão rezando com a mãe psicopata? A Malu acha que prefere porque ela tem medo da mãe dela.

-Ela vai ouvir - Singe falou, em pânico.

-Pode ouvir. Vivo dizendo isso na cara dela.

É que estávamos na sala e, a Malu, na cozinha. Primeiro ela entrou lá e acho que estava falando com a Rê. A Rê saiu, o Tommy entrou. O Tommy saiu, o Eddie entrou. Eddie saiu e ela ficou sozinha. Vince ia levantar, mas eu disse para ele esperar para ver a minha mágica em ação, que no máximo até amanhã a Malu seria groupie confirmadíssima no show em Saint-Malo.

O pior é que foi muito mais fácil do que eu estava imaginando. Malu voltou para a sala dizendo que "ia pensar". Aí o pessoal foi embora, eu peguei um papel e uma caneta e falei, me sentindo a voz da autoridade:

-Vamos escrever uma carta para a sua mãe, pedindo autorização pra viagem.

-Ela não vai autorizar.

-Vai se a gente usar as palavras certas. E mandar na data exata para a gente já ter partido quando ela receber.

-Ela me mata, Kate!

-Mata nada, você é a única filha e certeza que ela não faz mais sexo. Se te matar, não vai ter pra quem transmitir o legado.

-Kate!

-Que foi? Você foi feita com sexo, Maluzona! Pega a caneta, anda!

E, para o meu espanto, ela a pegou.

Como Gigi disse, podia deixa-la ir ao Brasil. Mas não queria. Desde que conheço a Malu, minha vida gira em torno de convencê-la a fazer tudo de acintoso e aviltante que existe de acordo com a mãe dela. Não vou dizer que isso não me divirta e me faça bem. Mas o mais importante é que gosto da Malu. Não sei o motivo. Não faço a menor ideia do porquê. O fato é que gosto, e gosto muito. Mesmo que ela fique de cabelo em pé com praticamente todos os assuntos super normais que começo, ela nunca deixa de me ouvir. E é uma amiga incrível, sabe? Do tipo que você sabe que pode contar até o fim dos dias. Malu já fez e faz tanta coisa por mim que o mínimo que posso fazer em troca é mostrar-lhe o caminho para fora da toca.

-Escreve aí com palavras bonitas, que você é boa nisso e eu não.

-Eu? Boa com palavras?

-Quem só tira dez em português aqui é você, Maluzona. Diz que surgiu a oportunidade de uma viagem da escola... espera, melhor, intercâmbio cultural...

Ela passou um tempão com a caneta no ar e por fim choramingou:

-Não quero mentir para a minha mãe.

-Mas não é mentira! Veja bem: brasileiras e ingleses indo para a França cobre a parte do intercâmbio. E música é cultura, nem sua mãe pode negar. Diga que iremos com um grupo de colegas, o que também é verdade, pois somos todos estudantes, acompanhados de adultos responsáveis.

-Quem são eles? Essa parte é mentira - ela parou de escrever.

-Ué, os meninos são todos maiores de idade. E a Gigi também.

Malu deu uma gargalhada. Sabe quantas vezes a Malu ri de gargalhar? Duas vezes por ano! E eu, euzinha, fui responsável pela primeira de 1986. De nada, universo.

Achei que ela fosse parar de escrever ali. Admito que, até pelos meus padrões, chamar aquele povo de adultos responsáveis havia sido demais, mas ela continuou escrevendo. Não reclamou mais, não fez a boa moça que ela é mesmo, escreveu palavra por palavra do que eu ditei. Pedi que preenchesse o envelope que eu também havia pegado e, só para ter certeza que ela não estava me enganando, peguei a carta e disse que a colocaria eu mesma no correio. Por incrível que pareça, ela me entregou sem reclamação alguma.

-O que deu eu você? - Perguntei, espantada.

Malu deu de ombros e não respondeu. Acho que ela simplesmente ligou o "foda-se", mas não tinha mesmo como me dizer porque palavrões não existem no seu vocabulário.

-Vai ser sensacional, Maluzona! De repente você até deixa de ser BV.

-Kate! - Ela arregalou os olhos.

-Que foi, meu Deus do céu?! Você vai ter que beijar na boca algum dia, não vai? Tudo a ver que seja na França. Os franceses são lindos e homem é muito bom, você não sabe o que está perdendo.

Malu ficou em silêncio. Eu achei que ela fosse me calar assim, tipo, eu não teria com quem interagir e acabaria mudando de assunto. Por fim, ela falou:

-E com quem seria?

Gente, hoje estava sendo um nocaute na Maria de Lourdes!

-Além de todos os homens que a gente vai encontrar pelo caminho? Sei lá, pode até ser um dos meninos. Tommy e Eddie foram correndo à cozinha tentar te convencer a ir.

Hum... Mais ou menos. E tudo bem que Vince também quase foi. E Tommy tem aquela fixação comigo, mas acho mesmo que ela gosta dele, embora a aposta mais segura fosse o Eddie. Ele é bem bonitinho, mas tem jeito de ser aqueles namorados chatos, sabe? Que ligam o dia inteiro e, se vocês têm uma briga besta tipo decidir que filme vão assistir, ele corta os pulsos. Se bem que, romântico e dramático, ele deve ser bem o tipo da Malu.

-Você não acha que o Eddie está a fim da Gigi? - Ela falou.

-É, acho. - E acho mesmo. - E o Tommy? - Arrisquei para testar, e não deu outra. Malu olhou imediatamente pro chão.

-Nada a ver.

-Por que não? - Insisti.

-Porque não. E depois, não estou interessada em nenhum dos dois. E nem em beijar ninguém, isso é coisa da sua cabeça. Preciso estudar.

Vá em frente, estude, Maria de Lourdes. Seus dias estão contados.

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Até o dia 20/09, estamos relembrando 1986 no grupo Realidades Paralelas da Mari. Apareça!


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora