Andou uma época que o Dave queria tocar as minhas guitarras, e eu fui e lhe dei uma de presente, que ele esqueceu em cinco minutos. O moleque queria era as minhas. Eu levava ele e o Josh no quarto, contava a história de cada uma delas, amarradão. Vou morrer de orgulho se um deles quiser seguir os meus passos. Sei lá, isso deve ser coisa de pai mesmo. Só que eles queriam mesmo era mexer nas guitarras, daí comprei uma Kramer baratinha pra cada um. Se eles quisessem começar, estava de bom tamanho, e aí a gente pensava na próxima. Ninguém se interessou e a Singe veio com uma que eu tenho o maior ciúme das minhas guitarras.
Porra, tenho nada. Guitarra é feita pra falar, não pra ficar muda na parede. Museus dão um medo do caralho, e se só o que eu tiver for um quarto cheio de guitarras paradas penduradas, vou ter construído o pior museu do mundo. Mas tocá-las sem respeito, desafiná-las, arranhá-las, tratar de qualquer jeito, aí também não. Quer mexer? Fique à vontade. Mas saiba mexer.
Ano passado a Gibson me chamou pra participar de uma edição comemorativa. Eu fui com eles escolher o material, ajudei a construir, coloquei as cordas, fizemos do zero uma puta guitarra maravilhosa com a minha assinatura. Tive de gravar um vídeo promocional e dar uma entrevista, essa parte foi um cu. É que odeio aparecer. Mas, no geral, foi uma das maiores honras da minha vida.
A outra foi quando a Malu a tocou. Malu voltou depois de oito anos, veio almoçar aqui em casa com o Tom e o filho dela, e eu estava louco pra perguntar o que ela tava fazendo. A Malu é aquela pessoa que você admira e te inspira, saca? Nunca vi uma guitarrista como aquela, ela tá lá em cima junto com todos os gênios, e talvez uns degraus acima, porque ela não só toca como ninguém, ela faz música como ninguém. A menina tem uma técnica do caralho, o que você lhe der, ela executa com perfeição e sem erros, e ao mesmo tempo ela sente, existe uma alma incrível em tudo o que ela faz. Ela se transporta pra guitarra, conversa, dialoga, manda, é uma coisa de dar medo. E, ao mesmo tempo, é a coisa mais linda do mundo. Então, quando eu os levei ao quarto onde guardo as guitarras porque o filho da Malu queria que eu tocasse umas músicas dos Angels, perguntei o que ela andava fazendo de bom, ela disse que nada, o que foi uma tremenda surpresa. Pelo que a gente conversou no outro jantar que teve aqui em casa, o tal que o filho da puta covarde do Tom furou, ela estava trabalhando no conservatório em Paris. Como aquela garota podia viver cercada de música todos os dias e não se inspirar, eu não fazia ideia.
-Eu não acredito.
-Juro, nada. Quero dizer, tenho feito muita coisa boa, mas nada de novo. Eu não componho há séculos, com exceção de uma música que nunca consegui terminar.
-Então vamos ouvir! - Singe se animou.
-Mas só se eu puder tocar a Gibson.
Porra! Claro que ela podia tocar a Gibson! Eu a tirei do suporte e a entreguei pra Malu, sabendo que ela estaria em mãos melhores até que as minhas.
-Na verdade, eu fiz essa música pro violão, mas vamos lá.
E era só a porra da coisa mais bonita que já ouvi na vida. Era triste e era otimista. Tinha uma carga do caralho, uma tremenda força e ao mesmo tempo uma nostalgia. Era...
-É brilhante! - Eu disse.
E Tom falou logo em seguida:
-É Saint Malo!
-É sobre uma noite que eu, Tom e Eddie passamos na praia. A letra é do Eddie. Foi uma poesia que ele me deu quando... Bem, quando eu estava em York. Eu venho tentando transformá-la em música desde que fui para Paris, mas não consigo terminar.
-Me ensina e a gente termina junto - falei.
-Fechado! Se eu puder tocar a Gibson.
-Fechado!
E terminamos: Eu, Malu, Tom e Eddie. Acho que tá todo mundo pensando que isso tem que ser gravado, mas ainda não trocamos ideia pra poder pedir permissão pra Malu. Se gravarmos, Lily vai ser o maior sucesso da história dos Angels, mas ela diz que a música é bem pessoal e tal, e coisas pessoais é algo que eu respeito. A merda é que ela viria bem a calhar, porque estamos reunindo material pro novo CD, o que significa que tenho ido bastante ao apartamento do Tom, e numa dessas vezes perguntei à Malu o que ela estava tocando.
-Nada.
-Nada? E a sua Fender?
-Ficou na França. Eu não ando tocando guitarra. Ando um pouco sem tempo.
A merda que anda.
Comentei com a Singe, e ela disse que é assim mesmo, que a Malu casou, teve um filho, mudou as prioridades, como ela, que não tocava bateria há anos. Mas caralho, não é como a Singe. A Singe gostava de bateria. A guitarra é parte da Malu. Tipo dizer que você não anda usando seu coração porque tá sem tempo, sabe?
Dei uma olhada no quarto. Não tive coragem de pegar a Gibson, mas peguei a Stratocaster e levei pra ela. Não dá para cortar as cordas vocais da menina.
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Esse POV é parte da Semana do Mick, que acontece de 21 a 26 de julho no grupo Realidade Paralelas da Mari
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O Lado Escuro da Lua
RomanceEsse livro é uma coletânea dos POVs de Canções da Minha Vida e Diários de Malu, à venda na Amazon.com.br. Essas visões dos personagens foram escritas pelas leitoras e, algumas, pela autora, e nasceram de uma brincadeira no grupo Realidades Paralelas...