Confronto.

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BESSIE

Silêncio... Não sei bem aonde estou, mas o ambiente me parece familiar. Uma casa simples, porém bem arrumada. Uma criança brinca na calçada com um carrinho pequeno e muito velho. Ele está quebrado, tem apenas três rodas. Os cabelos negros da garotinha voam com o vento e ela parece resmungar algo que não consigo entender. Da porta, um senhor de aparentemente cinquenta anos olha emocionado para a cena. Lágrimas escorrem de seus olhos e ele precisa disfarçar quando a menina o chama. Reconheço na hora: é Anthony, o padre da cidade. Isso indica que aquela criança brincando com um carrinho sou eu em uma versão menor.

— Já está na hora de comer, mocinha. Por que não guarda o seu brinquedo e me ajuda a colocar a mesa do almoço? — o padre diz em um tom amável.

A garota ignora. Prefere brincar com seu carrinho de três rodas.

— Por favor, filha — meu pai insiste — Venha comer e depois poderá brincar o quanto quiser.

— Eu quero um carrinho novo — a pequena diz com seus bracinhos cruzados.

— Você terá um, eu prometo.

— O senhor está falando isso só para eu ir comer — rebate.

É a vez de Anthony cruzar os braços. Seu olhar severo indica que está magoado com a acusação.

— Pelos céus, filha! — papai exclama, visivelmente chateado — Alguma vez eu já menti para você?

A versão menor de mim nega com a cabeça e segura a mão do padre.

— Vamos ter que agradecer de novo pelo alimento que vamos comer? — choraminga.

— Sempre temos que agradecer por aquilo que temos, Bessie! — me repreende enquanto entramos em casa.

A Bessie de cinco anos para de andar e solta a mão de Anthony, que se abaixa para poder olhá-la nos olhos e questiona se há algum problema.

— Vou agradecer ao papai do céu por ter o senhor comigo então — a menina sussurra e abraça o padre repentinamente — Eu te amo, pai!

— Eu amo muito você, minha filha. Não importa o que aconteça, nunca se esqueça disso.

Pobre Bessie... Se soubesse o que vai acontecer na semana que vem, aproveitaria mais esse momento.

Como se lesse meus pensamentos, o padre olha diretamente para mim, por cima dos ombros da menina.

— Shhh... — murmura, colocando o dedo indicador sobre seus lábios para pedir silêncio.

Acordo sufocada. Sento na cama rapidamente, ainda assustada com o que acabei de sonhar, e respiro fundo, puxando todo o ar que consigo para dentro dos pulmões. Não é a primeira vez que sonho com meu pai ou com alguma lembrança da minha infância, mas é a primeira vez que parece tão real. Por um momento, é como se o tempo tivesse parado e eu voltasse a época em que minha única preocupação era saber se ganharia um carrinho novo de presente de Natal ou não.

— Srta. Lotrov? — batidas na porta fazem eu despertar de vez. Sem esperar pela minha resposta, a porta do quarto é aberta aos poucos e alguém coloca a cabeça para dentro do quarto — Tudo bem por aqui? Ouvi alguns barulhos estranhos, como se a senhorita estivesse gritando.

Levanto da cama fingindo indiferença. Zita, minha empregada, entra no quarto. Lucca a contratou para me ajudar com as tarefas de casa, mas é ela quem praticamente faz tudo, porque eu mesma não sei fritar um ovo. Não tem mais que cinquenta anos, apesar de ter algumas rugas espalhadas pelo rosto, e é muito, mas muito atenciosa.

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