O fim de semana

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Naquele sábado, elas não conseguiram sair de casa. Aisha tomou a iniciativa de abrir o portão por algumas vezes, para ver se conseguia o contato com algum vizinho, algo que era raro naquela comunidade, extremamente fechada, mas, não obteve sucesso. Tudo que ela conseguiu ver foram as marcas de sangue deixadas por aquele homem morto no dia anterior o que a aterrorizou ainda mais.

Depois do assassinato daquele homem as pessoas decidiram ficar reclusas em suas casas, com medo e sem vontade de ter contato com ninguém naquele bairro de classe média alta de Raqqa.

Após essas tentativas de contato sem sucesso com os vizinhos, já passando fome, ela foi até Lina e a questionou:

- Batemos na porta dos nossos vizinhos para saber se eles têm algo a compartilhar conosco? Tenho medo que sejamos pegas indo para o centro ou para algum comércio, mas se pedirmos algo aqui, acho que podemos matar um pouco a nossa fome. O que acha?

- Eu não sei até que ponto isso seria bem visto. Temo que isso possa chegar aos ouvidos de Omar e nos trazer mais problemas Aisha.

- Você tem muito medo dele não é Lina? Me diga, o que aconteceu que ele te aterroriza tanto?

- Eu prefiro não falar sobre isso Aisha. Enquanto estive na casa dele era sempre muito agressivo. Me aterrorizava sempre que possível, mas, eu prefiro falar sobre coisas boas.

- Entendo. Se você quiser eu me arrisco a ir até o centro do bairro para adquirir mantimentos. Não podemos ficar tanto tempo assim sem comer, isso pode ser perigoso para a nossa saúde. Não nos alimentamos desde antes de ontem.

- Já está a escurecer. Temo que não possamos fazer mais isso hoje Aisha. Se corremos risco de sair durante o dia e sermos pega a punição é uma, se nos pegam durante a noite é que estaríamos perdidas mesmo, a punição seria muito pior. Acho melhor esperarmos até amanhã. Amanhã nós vamos ao centro. Não teremos outra alternativa.

- Tudo bem. Então vamos amanhã logo pela manhã. Diz Aisha com um semblante triste, devido a fome que se encontrava.

Dormir naquela noite foi algo extremamente difícil para Lina e para Aisha. A fome é algo que dói extremamente. O corpo fica debilitado e a dor do estômago é algo muito impressionante, beira um insuportável.

Lina estava a amamentar Mohamed, o que a tirava ainda mais energia e a deixava em uma situação ainda mais desesperadora de debilidade. Elas não teriam mesmo saída, no dia seguinte precisariam comprar algo para se alimentarem, sobre o risco de adoecerem naquela casa.

O dia amanhece e ambas conseguiram dormir um pouco durante a madrugada. Elas se preparam para sair com todo o cuidado para não chamar a atenção daqueles guardas. Por volta das nove horas da manhã daquele domingo elas caminham em direção a um comércio do bairro. Foram Aisha e Mohamed no colo de sua mãe Lina.

Ainda no caminho elas notaram que não haviam mulheres nas ruas e que os homens que as viam, ficavam um pouco assustados, o que as deixaram bastante desconfiadas. Ao chegar no bairro, em um local de comércio movimentado e que as mulheres normalmente realizavam as suas compras, elas notam que não haviam mulheres presentes naquela manhã além delas duas e isso as assustou ainda mais.

Rapidamente ao verem que estavam a chamar muita a atenção dos homens que passavam pela rua, por serem as únicas mulheres presentes naquele espaço, elas entraram em um comércio, separaram alguns mantimentos, não muitos, pela preocupação com o tempo e levam até o balcão para pagar a um senhor que era o dono do estabelecimento.

Enquanto aquele senhor calculava os valores da compra, Aisha toma coragem e questiona:

- Porque não há mulheres na venda nesse momento senhor?

- Esse horário não é permitido que as mulheres saiam de casa senhora. O regime permitiu que elas saíssem temporariamente, até que os roubos diminuam, apenas de dez as doze horas e de quatorze às dezesseis, acompanhadas dos seus maridos ou com atestado de que são viúvas ou que seus maridos estão incapacitados. O que a senhora faz aqui a essa hora, não tem medo de ser presa? Questionou aquele senhor desconfiado.

Assustadas, Aisha e Lina pegam as coisas rapidamente e antes de partir Aisha responde:

- Eu não sabia dessa regra senhor. Estou indo para casa. Espero que os membros do regime não me vejam até chegar lá.

- A senhora mora muito longe daqui? Questionou aquele senhor com um olhar de compaixão.

- Moro a uns cinco quarteirões senhor.

- O regime tem sido muito cruel com quem descumpre as suas regras. Acho melhor a senhora não ir nesse momento. Se a senhora quiser, venha para a minha casa, fique aqui até o horário recomendado pelo regime. Quando der dez horas a senhora retorna. Será mais seguro. Propõe aquele senhor demonstrando preocupação com a vulnerabilidade daquelas senhoras.

Aisha olha para Lina e ela concorda balançando a cabeça. Então elas decidem aceitar a proteção daquele homem e ficam na casa dele com a sua esposa e seus filhos, a espera do momento em que as mulheres tinham liberação parcial para se deslocar.

Enquanto estava naquele local, a esposa daquele senhor as questionou:

- Porque se arriscaram a vir aqui fora do horário?

- Nós não sabíamos dessa regra senhora. Respondeu Lina.

- Chegaram aqui recentemente?

- Não. O nosso marido foi para a guerra e não temos outro homem em casa para nos passar as novas regras do regime. Disse Aisha.

- Eu odeio esse regime. Desde que eles chegaram aqui eu sabia que eles iriam atrapalhar a nossa vida. Perdemos totalmente a nossa liberdade. Que o meu marido ou alguém do regime não ouça isso que estou a dizer. Confidencia aquela senhora.

- Nós também não gostamos senhora. Temos muito medo deles. Mas, o que podemos fazer? Nesse contexto, só podemos submeter as suas regras. Responde Aisha enquanto Lina balança a cabeça positivamente.

Alguns minutos se passaram de silêncio naquele espaço, enquanto as crianças brincavam. Então Aisha e Lina perceberam que estava a chegar o horário em que o deslocamento era permitido e disseram para aquela senhora:

- Acho que agora já podemos ir. Muito obrigada senhora, por nos acolher. A senhora e seu marido são pessoas muito boas. Acho que nos salvaram de uma situação muito complicada perante o regime.

- Tomem muito cuidado com o que fazem. Esse regime não aceita erros. Que o magnífico as acompanhe.

- Que o magnífico acompanhe a senhora também!

Um pouco mais tranquilas, ao ver que outras mulheres estavam a circular na rua, Aisha e Lina aproveitaram aquele mercado e a bondade daquele senhor para comprar mais algumas coisas na sua venda, com o objetivo de fazerem um bom estoque.

Antes de partirem, elas agradeceram muito aquele senhor por protegê-las e saíram levando uma grande quantidade de mantimentos adquiridos. Aisha levava duas sacolas grandes e Lina levava o seu filho em um braço e uma sacola de mantimentos no outro, sentindo um peso enorme.

Pelo caminho, muitos homens e mulheres as encaravam, de forma desconfiada, por elas terem bastante alimento nas suas sacolas, em uma situação em que claramente parte daquelas pessoas estava a passar fome.

Ao constatar essa situação e o risco de serem roubadas naquele contexto, elas apertaram o passo e em pouco tempo chegaram em casa, respirando aliviadas por nada demais ter ocorrido que pudesse as prejudicar.

- Aquele senhor foi um anjo em nossa vida! Disse Aisha.

- Ele foi mesmo muito legal em nos dar proteção. Agora vou preparar o almoço, estou com muita fome. Tanta fome que vou até comer uns biscoitinhos antes, diz Lina a sorrir, enquanto tira uns biscoitos regionais, de um saco de papel e reparte com Aisha, que come com ela como se não houvesse amanhã.

Felizes depois de se alimentarem após tanto tempo, elas deixam Mohamed no chão e vão preparar o almoço daquele dia, felizmente agora com os estoques reestabelecidos e com uma certa tranquilidade de que nada demais aconteceu na ida ao mercado.

Casamento forçado e abusivo IIIOnde histórias criam vida. Descubra agora