Ela estava emburrada... Mais uma vez. A areia sentia as pisadas dos seus pés. As águas vinham e envolvia seus tornozelos. A brisa balançava seus cabelos castanhos e trançados. Uma pequena e solitária lagrima escorreu do seu olho, mas foi rapidamente removida pela mão direita.
Sentou em uma pedra e olhou para o horizonte, para aquele infindável mar.
"De novo"- disse ela em sussurro.
Ao longo desse tempo, já estava cansada de ouvir essa frase: "De novo, de novo... De novo". Barcos, pescas... Tudo isso foi passado para ela depois que sua irmã teve outras responsabilidades. Mas ela não era assim. Por que ficar comparando ela a irmã? Por que seu pai dizia que nada estava bom?
"Não é fácil fazer as coisas com você" – repetiu a mesma frase que recebia do seu pai em sussurro.
Helmir era um bom homem. Nunca deixou nada faltar dentro de casa, nem quando Sanin ficou na posse de Nidon. Mas com o passar do tempo, aquele homem, aquele pai... não existiu mais. Não da maneira que ela conhecia. Os carinhos tinham ficado mais ásperos e as palavras mais pesadas.
A maré voltou a tocar aqueles pés, juntamente com algumas conchas. Ela pegou-as com seus pequenos dedos e trouxe-as para mais perto do rosto. Sentiu as texturas. Girou-as. As lagrimas rolaram sobre suas bochechas.
"Sinto sua falta" – falou sob o choro, pois sua irmã sempre trazia conchas para ela; dos mais variados tamanhos, formas, cores, texturas... E já fazia um bom tempo que ela e seu pai não a encontraram mais desde a última visita.
Colocou as conchas na bolsa de lado que sempre carregava com ela, ou qualquer outra coisa que fosse interessante. Mas as conchas, em especial, eram seu refúgio, porto seguro; uma forma de ter sua irmã, um pouco mais perto de si.
Não demorou muito e mais uma onda voltou para a margem, e envolveu os pequenos pés da menina. Ela direcionou sua atenção para a água e deparou-se com algo volumoso perto do seu pé. Um objeto. Envolveu ele com suas mãos. Musgos, algas... Preenchia-o por completo. Olhou-o mais de perto. Girou entre seus dedos. Era áspero. Parecia pedra. Tinha um formato esférico, mas não era totalmente redondo.
Junto a areia de onde ela estava sentada, emergiram três conchas; uma comprida em formato de espiral, outra mais ovalada com uma pequena abertura na ponta e mais aberta na outra e a última em forma de leque amarrada a inúmeros cascalhos.
Ela olhou para o mar e sorriu.
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Deixou a bolsa sobre a mesa de madeira ao lado da cama. As três ultimas conchas ficou do lado de fora; pareciam conchas normais, mas diferentes em tamanho. Porém, leves. Já aquele, totalmente diferente dos outros, foi cuidadosamente lavado, revelando assim, a sua verdadeira imagem: Uma pedra. Mas bem diferente. Azul e verde convergiam entre si com desenhos fluidos, lembrando caminhos, mas não eram, eram ondas. Sua textura era lisa, mas não necessariamente frágil. Ela a achou muito bonita. Colocou-a junto as outras três conchas. As quatro exibiam-se como troféus.
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Ela voltou para a praia aos fundos de Sanin, onde não era usada como porto para os veleiros, na esperança, é claro, de encontrar sua irmã novamente. Porque aquilo era um sinal. Tinha que ser um sinal.
Semanas passaram-se. Nada de conchas e nada de sua irmã. Ainda assim, a praia continuava a mesma; ouvia seus desabafos e levava-os para longe através das ondas, talvez para sua irmã, quem sabe? Numa clara tentativa de amenizar a saudade e tudo aquilo que ela sentia em relação ao seu pai quando ele sempre a comparava a irmã.
Depois que sua irmã tinha assumido outras responsabilidades, ficou difícil para ela entender, então, apenas aceitou. Mas com o passar do tempo, compreendeu toda a situação. Então, fez de si mesma a sua concha. Criou uma casca ao seu redor e habitou dentro do seu mundo, seu silencio, seus pensamentos.
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Quando estava com um pequeno caderno nas mãos sobre a cama, observando uma das conchas que pegara horas atrás, ouviu um barulho. Rapidamente foi tirada a sua atenção. Olhou em volta e não viu nada de diferente que fosse fazer aquele barulho de estilhaço. Mas foi quando olhou mais atentamente pela segunda vez, que conseguiu ver sobre a mesa, onde tinha colocado as conchas maiores e mais bonitas que as outras, que só três estavam no lugar.
Levantou-se da cama e foi ao chão. A pedra estava toda estilhaçada. Ficou muito triste. Viu sobre aquelas pedaços a imagem da sua irmã. Sentiu um sentimento de abandono. E agora, até as lembranças estavam querendo abandona-la.
Outro som envolveu seu quarto.
Ergueu a cabeça, dilatou seus olhos em susto, e virou-se lentamente sobre o piso de madeira. Colocou seus joelhos de frente para a cama e abaixou seu corpo bem devagar.
Levou sua cabeça próxima ao chão, e então seus olhos puderam ver: o som tinha forma e tamanho. Era pequeno, húmido, de barbatanas, uma longa calda... Um peixe. Mas peixes não tem orelhas pontudas e nem um focinho comprido. Azul e verde misturavam-se naquele pequeno corpo esguio.
Não era concha. Não era pedra. Era um ovo.
O bichinho inclinou a cabeça olhando para ela. A menina não temeu.
"Olá, amiguinho"
O animal foi para trás, assustado.
"Não... Não" – disse em sussurro. "Não tenha medo. Não vou machucar você"
Ela moveu sua mão na direção dele, o animal hesitou. Mas segundo depois, aproximou-se bem devagar, farejando. Estava com medo. Aproximou-se mais um pouco rastejando sobre o piso. Mais um pouco... A distância diminuiu. Ficou mais perto, mais perto, mais perto...
"Filha! " – chamou seu pai quando abriu a porta.
O animal escondeu-se.
"Não..." – falou baixinho.
"O que está fazendo? " – questionou o pai.
"Ah, nada..." – saiu debaixo da cama. "Minhas conchas..."
"Mais uma vez essas conchas... Já falei pra parar com isso" – seu olhar era sério. "Eu preciso de você na oficina, não demore"
Ela olhou para ele, mas logo abaixou a cabeça, triste. Segundos depois, ele fechou a porta.
Ele entendia, mas parecia que não entendia mais. Por que não entendia mais? Ele via como ela se sentia com aquilo. Contudo, a menina sentiu um toque frio, húmido... Sutil em sua perna.
Era o pequeno animal.
Ela sorriu.
A ponta do seu dedo direito deslizou sobre aquela cabecinha. O minúsculo ser, quase do tamanho da sua mão, retribuiu acariciando-a.
"O que será que você come? " – questionou a menina consigo mesma. "Talvez seja algas... Não importa. Será algas"
O animal... Seu mais novo amigo, não era peixe e nem uma espécie terrena, mas o próprio mar.
~~
O tempo passou, e o pequeno ser, não era mais tão pequeno assim. A menina percebendo seu crescimento rápido, logo prontificou em colocá-lo num barriu que encontrara pelas ruas de Sanin. Encheu-o de água e fez dele a nova casa do seu amigo. Tratou-o com algas e algumas frutas ao longo dos dias e nesse período ele foi crescendo ainda mais. O barriu passou a não suportar mais aquele corpo. Então, não tendo mais como trata-lo de forma escondida, levou-o com muita dificuldade dentro de um carrinho de madeira para a praia, aos fundos da ilha, e soltou-o no mar. A alegria do animal foi visível em seus vários saltos.
Daquele dia em diante, a menina continuou visitando ele. Brincavam por várias horas seguidas. Ele, seu animal, fazia algumas bolhas sob a água que estouravam na superfície. A menina gargalhava-se com isso, e assim, devido ao som que elas faziam ao romperem-se, ele foi nomeado:
Glob
O mar, aquele imenso mundo repleto de água, que muita das vezes ouvia o sussurrar daquele inocente coração, deixou de ser o ouvinte principal, Glob, o Cavalo-das-águas, tornou-se seu mais novo ouvinte, seu confidente.
Entretanto, todos aqueles dias foram fotografados por olhos longínquos, que a observavam há muito tempo seu silencio, sua solidão, lamentações... Suas lágrimas. Mas viram também, uma menininha alegrar-se com estouro de bolhas ao lado do amigo, e a correr e pular com ele, transmitindo uma sensação de liberdade.
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The Guardians
FantasyO universo de "The Guardians" é repleto de fantasia, no qual, encontra-se bondade, maldade, companheirismo, individualismo. Por ironia, sorte ou azar, eles foram selecionados minuciosamente com habilidades distintas pelo destino. Explore esse unive...