Os Olhos Afiados

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Nove meses passaram-se. O casal ficou muito feliz com a recompensa. Inúmeras foram as tentativas, e agora o resultado estava nas mãos, ou melhor, no colo da mãe. Mas tamanha alegria não era para tanto. A cidade-baixa não favorecia nada no crescimento da criança. Os pais sabiam disso. Então, lembraram da amizade que fizeram com o casal da Cidade-alta que se propuseram em ajudar; cuidando da menina até eles conseguirem uma forma de fugir do reino.

Depois de subir largas ruas, e virar várias esquinas, chegaram a casa conhecida. Ninguém podia saber. Bateram no portão. Um homem e uma mulher os atenderam. A mulher adiantou-se e pegou logo a criança cor de ébano embrulhada em panos.

"Muito obrigada" – agradeceu a mãe da criança. "Muito obrigada.

"Está bem" – comentou a mulher impaciente. "Está bem"

"O pai volta para pegar você..."

O marido da mulher fechou rapidamente o portão.

"Eu prometo" – disse o pai por fim.

anos passaram-se. O casal cuidou da menina muito bem, até porque, eles não podiam ter filhos.

O quarto dela era bonito, suas roupas confortáveis. Brincava pela casa e corria entre as ruas. O homem e a mulher apegaram-se a menina. Sim, ela estava feliz. Mas, e os seus pais? Não teria porque lembrar deles. Sua nova família fez questão dela esquece-los muito bem, quando disse que foi abandonada por eles.

"Se algum dia.... por algum motivo ou razão a gente se encontrar... esqueça que sou sua filha" – disse ela em sussurro sentada ao lado da cama com os olhos cheios d'água. Grande era a magoa em seu coração.

Sua nova família a deixou bem confortável em relação a tudo o que a cercava; ela não precisaria ter pressa sobre o futuro: como ajudar eles na fabricação e venda de tecidos, ser uma artesã ou até mesmo trabalhar dentro do palácio. Ela podia ficar tranquila sobre tudo isso. Podia aproveitar o tempo e deixar para pensar nessas coisas mais para a frente.

Mas com o passar do tempo, notaram uma mudança nela. Não era mais a mesma. O seu senso de direção tinha mudado. Ela machucava muito os joelhos e batia demais a cara nas paredes. Parecia que não conhecia mais a casa, o ambiente em que ficava. Outrora, nas conversas, mesmo que prestasse atenção, seus olhos não demonstravam a mesma coisa. Pareciam perdidos. Os tons castanho-escuro tinham dado lugar a um cinza-opaco.

Ela gritou e gritou várias vezes, mas não obteve resposta. Sob a chuva, envolvida pela noite fria, viu-se rejeitada.

Sua estadia pelas ruas da capital nidoniana, sob as minúsculas fileiras dos telhados, foi bem rápida. Não era aceitável pessoas dormirem nas ruas naquela parte da cidade. Então, alguém a encontrou. Deu-lhe abrigo, comida e roupas.

"Eu me chamo Kassia. " – disse quando terminou de colocar um prato de sopa para menina sobre a mesa. "E você? " – sentou-se a frente dela.

"Hy..." – disse a menina de cabeça baixa. "Hyesoo. Eu me chamo Hyesoo"

"O que aconteceu? " – questionou Kassia.

"Me colocaram para fora" – respondeu Hyesoo com um cobertor sobre o ombro.

"Quem fez isso? " – inclinou-se Kassia.

Hyesoo ficou em silencio.

"Está tudo bem, querida" – disse Kassia.

A menina deu os nomes e a Dama de Ferro ficou séria.

"Por que fizeram isso com você?" – Perguntou Kassia mais uma vez.

Hyesoo permaneceu de cabeça baixa e deu o silencio como resposta.

"Não tenha medo, pode falar" – pediu Kassia.

"Eu..." – começou a menina. "Perdi a visão" – respondeu.

"Não se preocupa, amor. " – pegou-a pela mão. "Está segura agora. Aqui ninguém fechara os olhos para você"

Hyesoo levantou a cabeça e soltou um tímido sorriso.

"Agora beba antes que esfrie" – Kassia conduziu a mão da menina até a colher próxima ao prato e beijou sua cabeça. 

O tempo passou. A menina cresceu. Seus cabelos negros como o carvão, escorridos um pouco além dos ombros, brilhavam devido ao seu cuidado e o de Kassia com eles. Hyesoo já tinha decorado todos os cômodos do palácio, cada corredor, salão... tudo.

Ela se sentiu em casa, e não sozinha. Porque ninguém era diferente de ninguém. Todos tinham uma perda: Emom, perdeu o pai, Keyla, perdeu a mãe, Connor, também não tinha mais sua família, Bryan, foi rejeitado do seu antigo lar e Zoe, perdeu seu pai e não teve mais as pernas depois de uma batalha. Botas semelhantes a próteses foram colocadas em seu lugar. Ninguém ali era inteiro. Assim como ela, sempre faltava um pedaço. Por isso que havia respeito. E era isso que a deixava feliz. Porque ela era tratada como igual, sem distinção.

Mas sons que vinham da área de treinamento sempre lhe chamavam atenção.

"Tem certeza disso? " – perguntou Kassia com as mãos nos ombros da menina.

"Sim" – afirmou Hyesoo com um sorriso no rosto.

A Dama de Ferro levou a menina diante uma larga mesa. Inúmeras armas estavam sobre ela; machados, espadas, lanças, escudos, martelos, arcos e flechas...

"Aqui temos uma frase: você não escolhe a arma, é escolhida por ela. Se conseguir se sair bem, poderá entrar para a elite. Os Escarlate" – falou Kassia. "Mas se...."

"Eu vou entrar" – afirmou a jovem.

Hyesoo tateou a mesa e as armas sobre ela. Poucos foram os minutos para que fosse escolhida.

Com um lenço amarrado  em torno de seus olhos cegos, treinou por vários dias e ajudou nos incontáveis confrontos contra os rebeldes da capital e das cidades do reino. Mesmo com sua deficiência, ganhou notoriedade entre eles por suas habilidades no manuseio das laminas-gêmeas; semelhantes a katanas. Assim, tornou-se a mais nova integrante dos Escarlate e ficou conhecida pelo grupo como Hyesoo, os Olhos Afiados.

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