Os olhos do senhor não desgrudavam do jovem deitado sob grossos cobertores. Os cabelos negros, escorridos. O senhor levou sua mão até aquele rosto. Mas quando ficou quase para encostar, o garoto conseguiu abrir levemente suas pálpebras, revelando os olhos castanho-escuro. Rapidamente aquele homem, afastou-se e foi para a fogueira ali próxima.
Duas piscadas foram suficientes para despertar do sono. Olhou em volta tentando entender o que estava acontecendo, mas era estranho. Desconhecido. Tentou levantar-se, mas em vão. Uma forte dor sentiu em sua cabeça. Fez mais uma tentativa, sem sucesso. Seu tornozelo direito envolvido com o que parecia ser uma tala, doía também.
"Tenta não fazer esforço"
"O que? "
"Você ficou três dias desacordado" – disse o senhor de costas para o jovem.
"Minha cabeça" – reclamou o garoto.
Uma tabua de madeira com alguns pedaços de carne foi colocada diante dele.
"Deve comer"
"Tenho que ir pra casa"
"Tem que comer primeiro"
A expressão de dor no rosto do jovem fotografou os traços não tão joviais daquele senhor olhando para ele sob o capuz, e percebeu que não teria outra escolha.
"Quem é você? "
"Morin" – respondeu o senhor voltado para a fogueira.
Por algum motivo, aquele nome não lhe pareceu estranho.
"O que aconteceu? Eu estava caçando... De repente tudo apagou"
"Tempos difíceis" – disse o senhor sem se mover. "Caçar agora, está sendo uma luta. Não contra a natureza, mas contra outra"
"Outra? "
"A natureza humana" – ele tinha conhecimento dos boatos sobre a ameaça do Norte, só não sabia que seria assim, tão rápido.
O jovem até que tentou refletir sobre aquelas palavras, mas as fortes dores não o deixavam raciocinar muito bem.
"Descansa mais um pouco" – pediu o senhor.
~~
Dias passaram-se sobre aquilo onde estava deitado, lembrando uma cama. Mas tinha que voltar para casa, para sua mãe. Era muito tempo pra quem nunca ficou longe dela.
Os olhos do garoto lutaram contra a luz fria do céu acinzentado, que rompia a entrada da caverna. Duas, três piscadas, e o menino conseguiu ver, de modo ainda dificultoso, a silhueta do senhor sumindo no horizonte. Aquela cena fez ele sentir uma sensação estranha, pareceu muito familiar. Virou-se do outro lado e voltou a dormir novamente.
Horas depois, acordou. Olhou em volta, agora com mais nitidez, conseguiu ver melhor o interior da caverna. Mas nada de muito interessante que diferenciasse das outras que já estivera. A dor de cabeça não incomodava tanto como antes. Tirou a pelagem grossa que envolvia seu corpo, e tentou levantar-se mais uma vez. Não deu. Mais uma tentativa. Nada. Na terceira conseguiu, mas seu tornozelo direito envolvido a couro e cordas, ainda permanecia dolorido, mas nada comparado quando tinha acordado a primeira vez. Porém, não deixava firme seu pé no chão.
Um som de água corrente veio até seus ouvidos. Olhou para trás e escorou-se na parede para ter um melhor apoio. Caminhou de forma irregular, forçado. Mas poucos metros depois, chegou a um estreito córrego, seguiu. Poucos passos depois, ficou na entrada de uma enorme câmara. O teto semelhante a lanças e lago como o céu, completamente azul com o que parecia nuvens sobre ele.
O jovem abaixou perto da água. A leve bruma deslizava rente à superfície. O garoto sentiu o calor envolver o seu rosto, corpo, todo o ambiente. Uma sensação prazerosa. Mas muito mais que sentir o calor, foi ver o seu reflexo na água cristalina. Foi ver ele ali, sem alguém do lado, sem sua mãe. Isso fez uma lágrima escorrer no seu rosto.
~~
O tempo passou rápido dentro da caverna. Ele estava se sentindo bem melhor, revigorado. Seu tornozelo o mantinha firme sobre seu pé. Agradeceu ao senhor por isso. A relação entre os dois era relativamente amigável. O cuidado que Morin teve com ele, salvando-o do frio, dando-lhe o que comer, a preocupação com o seu bem-estar... Isso o fez pensar se aquele homem tinha família, porque como ele fez, é como um pai faz com o filho. Mas ele nunca tinha falado sobre aquilo, apesar que, nas poucas vezes em que falavam sobre o assunto, Morin esquivava da conversa.
A nevasca ainda permanecia lá fora. Os dois aqueciam-se em volta da fogueira. Ele queria voltar para casa, entretanto, mais uma vez foi barrado pelo senhor. A justificativa era sempre a mesma: A tempestade de neve. Os dois discutiam sobre isso, mas o senhor sempre tinha razão. Então, aproveitando do momento, voltou ao assunto em que Morin sempre ficava fugindo. O silencio veio como resposta. O jovem decidiu não insistir mais. Depois de alguns segundos ouvindo o estalar das madeiras consumidas pelo fogo, Morin rompeu o silencio.
"Tem família? "
O garoto levantou uma das sobrancelhas e não respondeu de imediato. Por que responder? Morin não respondia o que era lhe perguntado, mas por algum motivo, decidiu responder. Alguém tinha que dar o primeiro passo. Eles já eram próximos, bom, dentro do que foi permitido entre eles de serem próximos. Então, por que não se abrir um pouco mais com a pessoa que compartilha o mesmo ambiente que você? Em vez de perguntar, responder. Deixar a pessoa mais confortável em se abrir também.
"Sim, tenho" – respondeu o jovem.
"Acha que eu tenho? "
Ele respondeu. Não exatamente uma resposta, foi mais uma pergunta, mas já era alguma coisa.
"A maneira como cuidou de mim. Talvez tenha, ou já teve. É que deu pra perceber que mora aqui muito tempo, então... talvez tenha perdido alguém, ou mora sozinho mesmo."
"Sim, e perdi"
"Quem perdeu? "
Morin direcionou seus olhos para a entrada da caverna, para dentro da tempestade brutal que corria lá fora sob a profunda noite, e respirou fundo.
"Entendi" – comentou o garoto.
"E você? " – perguntou Morin.
"Ninguém. Eu moro com a minha mãe. Ela é a líder de nossa tribo."
"E pai? "
"Não tenho"
"Então perdeu alguém" – afirmou o senhor.
"Não. Você só perde quando tem. Se não tem, nunca perdeu"
Aquelas palavras foram mais fortes do que a nevasca que castigava a caverna. Poucos segundos depois de um breve silencio, o jovem continuou.
"Covarde" – disse com os olhos sobre o senhor.
Morin direcionou-se para o garoto e ele parecia perfurar cada parte do seu ser. Rapidamente voltou para a fogueira.
"Ele é um covarde. No momento em que mais precisávamos dele, ele virou as costas para nós. Deixou minha mãe carregar a tribo nas costas, e eu com a responsabilidade de defender o povo. Quantas vezes tive que enxugar suas lágrimas, porque ela não sabia o que fazer? " – olhou para a fogueira. "Quantas vezes tive que chorar sozinho pra não deixar que ela me visse como um fraco, porque também não sabia o que fazer?"
Morin tirou os olhos do garoto e levou-os ao chão.
"No fim, ela se tornou uma ótima líder e eu, o melhor guerreiro. Então, não, não perdi ninguém. Não tive um pai para perder."
O frio assolava as paredes da caverna, mas uma lágrima quente escorreu sobre o rosto daquele senhor, mas não era dos olhos, era do coração.
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The Guardians
FantasyO universo de "The Guardians" é repleto de fantasia, no qual, encontra-se bondade, maldade, companheirismo, individualismo. Por ironia, sorte ou azar, eles foram selecionados minuciosamente com habilidades distintas pelo destino. Explore esse unive...