Gigante

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A água escorria ligeiramente por entre as pedras, mostrando assim a profundidade do pequeno riacho, que não era nada. Dava para atravessar a pé se alguém quisesse. Mesmo com as pequenas ondas que se formavam por conta da variação do terreno, o reflexo do garotinho a beira da margem não dissolvia em meio aos pedregulhos.

Sentado sobre uma areia bem fina, de coloração quase que transparente de tão branca que era, o menino lascava um pequeno pedaço de madeira envolvida a um cordão.

Seus dedos envoltos a pedra que acabara de pegar do riacho movimentavam-se para frente e para trás lascando a madeira.

"Está quase!" – disse o menino.

Mais uma vez passou a pedra por sobre o pequeno pedaço de madeira em movimentos bem lentos e suaves.

"Só mais um pouco!" – disse mais uma vez.

Parou por alguns instantes para verificar o que tinha feito. Inclinou sua cabeça e assoprou a madeira em suas mãos. Uma pequena nuvem apareceu saindo do material, enrolando-se ao ar e dissipando logo em seguida.

"Acabei." – respondeu o menino com entusiasmo.

Alguns arbustos começaram a movimentar-se atrás dele. O jovem virou-se para ver o que era, mas logo seus olhos sorriram.

"Mãe, olha o que eu fiz!" – disse o menino levantando o colar e mostrando o rosto de um urso esculpido no pequeno pedaço de madeira.

Sua mãe aproximou-se dele e lambeu sua bochecha. O menino colocou o colar em si e envolveu seus braços no largo pescoço da grande ursa de pelagem marrom claro, subindo assim em suas costas. Acomodou-se sobre aquele corpo e amarrou seus longos dread.

"Onde estamos indo? Ah, sei... Pescar! Mas, mãe... Eu não consigo. Já tentei várias vezes." – disse o menino nas costas de sua mãe enquanto desciam o riacho.

A ursa deu uma olhada para ele por sobre seu ombro e logo voltou a seguir pelo caminho.

"Ah, mãe... Ele sabe que eu não consigo." – disse o jovem garoto enquanto tentava acertar alguns pássaros com seu estilingue.

Depois de alguns minutos descendo o riacho, eles chegaram a um extenso vale no interior daquela floresta fechada. Uma grande bacia d'água inundava a região. Essas bacias eram mantidas pelas temporadas de chuvas que vinham por sobre o lugar.

Os cardumes desciam o riacho para se reproduzirem, transformando aquele local num grande ninho e também numa farta área de alimentação.

A ursa sentou-se a beira da bacia, fazendo o menino escorregar-se por sobre suas costas. O jovem garoto olhou para seus irmãos dentro da água e para aquele que se destacava no meio deles, o chefe do grupo. Seu pai. Bom, ele o considerava como pai.

Um grande e forte urso marrom escuro. Apesar do seu tamanho e força, seu corpo trazia o reflexo do fardo de manter a segurança do grupo. Vários arranhões e cicatrizes, mas aquela que mais mostrava as consequências desses sacrifícios era uma cicatriz profunda em seu olho esquerdo, tirando totalmente sua visão.

O menino voltou a olhar para sua mãe que logo inclinou sua cabeça e o empurrou para frente. Ele simulou um retorno, mas a ursa estava logo atrás.

O jovem com a mãe alinhou-se juntamente com o restante do grupo. Os peixes pulavam e eles logo os abocanhavam, rasgando-os por cima das pedras. Mas o menino tentava, tentava e nada. Seus minúsculos dedos e longos braços finos, não conseguiam segurar os peixes que vinham. Teve um que até conseguiu pegar, mas logo escorregou, fazendo-o cair dentro d'água. O chefe deu uma olhada séria para ele mostrando suas presas, que mesmo estando escondidas, ainda assim podiam ser vistas.

Os machos têm suas presas maiores e por fora de suas mandíbulas. Um sinal de poder diante os seus inimigos.

Ao ver que o menino não conseguia nada outra vez, a mãe pegou um grande peixe que saltara no ar prendendo-o entre seus poderosos dentes. Direcionou sua cabeça até o jovem com o peixe em sua boca como de costume, mas ao cumprir tal ato, o chefe bateu suas grandiosas patas dianteiras na bacia, fazendo uma cortina d'água diante deles e soltando um longo e poderoso rugido. O garoto assustou-se com a cena que vira e foi direto para trás da mãe. Nunca tinha presenciado tamanha raiva. Nunca dessa maneira. Seus irmãos também se assustaram.

A mãe retornou a entregar o peixe para o garoto, o jovem infelizmente saiu correndo, voltando para o interior da floresta.

A ursa direcionou seu olhar para o poderoso urso, mostrando seus dentes para ele, ainda com o peixe em sua boca.

O chefe não se intimidou, continuou firme em sua posição.

O menino voltou para o acampamento onde eles moravam, ao pé de uma grandiosa árvore. Ali, agachou-se e chorou.

Depois de um tempo, os ursos retornaram para árvore. A mãe urso viu o gramado amassado próximo ao tronco, aproximou-se e cheirou. Suas pequenas orelhas levantaram-se e seus olhos dilataram-se. Algo acontecera com seu filhote. Rapidamente ela foi diante do chefe, avançando brutalmente em seu pescoço. O urso a jogou no chão com um só golpe de sua pata, mas ela conseguiu se reerguer ficando totalmente ereta. Os dois avançaram-se novamente. Patas, mordidas, rosnados... A luta durou alguns minutos, mas logo foi cessada. Os dois encararam-se por mais algum tempo, mas ela saiu à procura da criança. Os filhotes quiseram ir atrás da mãe, mas o pai os repreendeu mostrando os seus dentes.

A ursa embrenhou-se selva adentro, farejando o jovem garoto, mas nada. Nada da criança aparecer.

Algumas horas depois a ursa voltou de sua busca, seus filhotes foram até ela. Ela os recebeu de bom grado, mas seu coração não estava completo.

O chefe a encarou e ela retribuiu o olhar com os dentes para fora.

O dia não existia mais, a noite estava em seu lugar e com sigo a chuva. Eles estavam na época do verão, altas temperaturas e chuvas fortes.

O coração da ursa ainda acreditava.

Por sobre a árvore, a chuva formava uma cortina d'água entorno deles. As grandes folhas dos galhos os protegiam.

As horas passaram, assim como a chuva, que deixou apenas o gotejar das folhas em seu lugar.

Todos estavam deitados, mas o quebrar de galhos e alguma coisa sendo arrastada no interior da floresta fizera-os despertar. Suas orelhas levantaram-se, seus olhos ficaram bem atentos. O som aproximava-se da árvore. Os filhotes notaram algo e partiram para o interior dos arbustos. Alguns segundos depois eles retornaram, mas não estavam sozinhos. O jovem garoto estava com eles. A mãe urso rapidamente se levantou e foi ter com o menino. Ela esfregou seu rosto ao dele ainda molhado pela chuva que tomara, lambendo também a sua face. O jovem a retribuiu abraçando-a fortemente e unindo as suas testas, um sinal de carinho, afeto.

Ao retornarem para mais perto da árvore, ela e os filhotes deitaram-se em círculos. O menino veio logo atrás. Ele estava todo arranhado e caminhando com dificuldades, mas não por causa dos ferimentos, mas sim, por conta do grande cervo que trazia junto dele, arrastando-o pelos chifres. 

O grande urso levantou sua cabeça e olhou para o cervo, não demonstrou nenhuma reação. Apenas encarou o menino por alguns segundos.

O jovem arrastou o grande animal para o meio deles, retornou para a floresta e trouxe alguns galhos. Logo em seguida fez uma fogueira, mesmo sabendo que eles não iriam usar, mas a sua espécie usaria e também o fogo afasta os inimigos.

O menino retalhou a caça, dividiu os pedaços com seus irmãos e com sua mãe. Em seguida pegou uma coxa e a levou até o chefe. O grande urso ao receber o pedaço de carne virou o pescoço. O jovem seguiu para o lado da fogueira, sentou-se e começou a comer.

Alguns segundos depois, o urso voltou a olhar o pedaço de carne. Levou seus olhos para o menino, o mesmo fez que sim com a cabeça. Então, o grande urso trouxe para mais perto de si a carne com sua pata, desferindo assim uma poderosa mordida e arrancando um farto pedaço.

Sob a noite sem estrelas, com o gotejar incessante da chuva nas copas das árvores e envolvidos ao calor da fogueira, todos comeram da caça.

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