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[ 01 de março, terça-feira ] 




  Observo com desconfiança enquanto Keith varre o chão alegremente, dançando ao ritmo de Never Gonna Give You Up, que toca em um volume moderado na jukebox. Ele é sempre alegre, mas isso é animação demais para alguém que acabou de iniciar o turno e ainda tem mais três dias de trabalho pela frente. Tem alguma coisa rolando, além da sua aparente incapacidade de ficar triste. 

  Termino de pendurar as xícaras brancas de porcelana no suporte giratório, e saio de trás do balcão. O som oco dos saltos contra o piso não permite que minha aproximação passe despercebida. Quando estou perto o suficiente, Keith larga a vassoura, agarra minha mão e me faz girar. Solto um gritinho espantado, caindo em seus braços como em um filme de romance antigo. Ele me coloca em pé outra vez.

  — Para quê tanta animação, hein? — pergunto, arrumando o chapeuzinho do uniforme enquanto Keith recolhe a vassoura do chão. — Até parece que ganhou na loteria. 

  — Arianinha, se tudo correr tão bem quanto esperamos, irei ganhar uma coisa melhor — responde, sorridente.

  — Está falando da batalha de bandas? É maneiro, mas não acho que seja melhor que a loteria. 

  — Se ganharmos, poderemos mandar nossa demo profissional para alguma gravadora. Isso pode nos levar ao estrelato! 

  — Então é a expectativa que está te deixando todo empolgado. 

  — Isso, e o fato de o Leigh ter me deixado ficar com o que sobrou das tortillas. Trouxe algumas pro almoço — ele varre a sujeira para dentro da pá, e vai até a lata de lixo. — O cara é super massa, não sei como Castiel pode ser tão implicante. Ele te adora, é verdade, mas pude notar que não é nada romântico.

  — Leigh é muito legal mesmo — concordo. — Como foi o jantar, depois que fui embora?
 
  — Foi divertido. Eu nunca tinha percebido que ele fala formalmente, achei bacana. Notei que somos bem parecidos e bem diferentes ao mesmo tempo. Não parece que só temos três anos de diferença, Leigh age como um verdadeiro adulto.
 
  — Bom, ele cresceu no interior — explico. — Os pais são idosos. Ele saiu do ensino médio e foi direto para a faculdade, depois não parou de trabalhar e agora têm que cuidar do irmão caçula. Leigh tem um senso de responsabilidade muito grande. 

  — Pois é, que loucura. O cara usa roupas sociais, enquanto eu me visto como um adolescente.
 
  — Eu acho que essa amizade será boa para vocês dois. Você pode ajudar o Leigh a descontrair um pouco, e ele pode te ajudar a agir conforme a idade — provoco. 

  — Jovenzinha insolente — Keith brinca de volta. — Por essa razão não dividirei minhas tortillas contigo.
 
  Mostro a língua, e vou até a porta para mudar a placa. 

  — Nós tivemos infâncias, adolescências e inícios da vida adulta diferentes, mas temos uma bizarrice em comum que nos une. Não confiamos em papagaios. 

  — O que? — rio. — Como assim? 

  — Eles falam! Não pode negar que um animal falante é, no mínimo, muito suspeito. 

  — Corvos também falam. 

  — O que é ainda pior! — ele treme. — Essa merda me aterroriza. Escute o que eu digo, ainda seremos escravizados por esses bichos.

  — Você é ainda mais doido do que pensei — constato. 

  — Hum, Leigh é o único que me entende.
 
  — Fico feliz por terem se encontrado na loucura. Não que isso me surpreenda, eu já sabia que se dariam bem. Os dois são como raios de sol, só que você é um raio de sol do meio-dia e o Leigh, da manhã.

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