Capítulo 2

1.1K 107 15
                                    

- Eu não entendo. Não havia meninos no orfanato? - perguntou Marilla.

- Havia um monte deles. Mas a senhora Spencer disse especificamente que vocês queriam uma menina da minha idade, e a supervisora disse que eu serviria.

- ..É isso que dá mandar recado e não ir pessoalmente. Venha comigo; não fique parada! - começou a andar até a cozinha - Sinto decepcioná-la, mas não posso fazer nada. Nós queremos um menino para ajudar o Mathew com a fazenda; uma menina não tem utilidade, entende? - Tania limpou a garganta audivelmente.

- Eu não posso dizer que sim - afirmou Anne.

- Como é que é?

- Sem querer desrespeitá-la, mas eu não posso fazer o trabalho da fazenda sendo menina? - era por isso que Tania admirava Anne.

- Não é assim que as coisas são, mocinha!

- Não posso tentar? Eu sou tão forte quanto um menino e prefiro ficar ao ar livre do que enfiada em uma cozinha. Não entendo qual é o grande mistério. Por exemplo: e se, de repente, não houvesse mais meninos no mundo? Nenhum só.

- Ah, bobagem!

- Não faz sentido uma menina não poder fazer o trabalho da fazenda quando meninas podem fazem tudo que os garotos fazem, e ainda mais!

- A senhora se considera frágil ou incapaz? - Tania se intrometeu - Porque eu não me considero.

- E já que estou aqui, a senhora não poderia me dar uma chance?

- Eu não posso! E tire essas tolices da cabeça - falou aquilo alternando o olhar entre as mais novas - agora chega, vamos lavar as mãos para o jantar - as três foram para a pia e arregaçaram as mangas, tornando visíveis as marcas roxas no antebraço de Anne - minha nossa, criança! O que foi isso?

- Eu fiquei me beliscando hoje o dia inteiro pra ter certeza de que era tudo verdade - lavaram as mãos. A ruiva se sentou em uma cadeira à mesa (por ordem de Marilla) e as outras duas começaram a preparar o jantar.

...

Após estarem todos sentados e depois de terem rezado, começaram a comer, mas Anne não mexeu um músculo.

- Você não está comendo nada - a mais velha apontou.

- Eu não consigo. Desculpe. Mas estou nas profundezas dos desespero - Anne perdia um ponto com a sra. Cuthbert cada vez que abria a boca - consegue comer quando está nas profundezas do desespero?

- Eu nunca estive nas profundezas do desespero, então não sei - respondeu seca.

- A senhora nunca se imaginou nas profundezas do desespero? - "não? A minha vida já foi desesperadora o suficiente até agora" pensou Tania.

- ...Não, nunca.

- Bom, é um sentimento muito desconfortável, entende? - os irmãos a olharam, sem compreender que relação aquilo tinha com o fato de ela não estar comendo - Quando você tenta comer, surge um caroço enorme no meio da sua garganta e você não consegue engolir; nem mesmo se for um caramelo de chocolate - pausa - eu comi um caramelo de chocolate dois anos atrás e foi delicioso - outra pausa - eu espero que não se ofendam por eu não comer. Tudo aqui está extremamente excelente - Marilla continuou olhando para ela, estranhando.

- Acho que ela está cansada; melhor colocá-la para dormir - Mathew sugeriu. A irmã assentiu.

- Pegue sua mala e venha comigo - ordenou.

Tania, que já havia terminado de comer, se levantou, lavou seu prato e talheres, e seguiu Marilla e Anne para o próprio quarto.

Ao entrar no cômodo, a ruiva ficou admirada. Haviam desenhos e pinturas espalhados pelas paredes. A penteadeira estava cheia de papéis, e uma pena repousava sobre um pote de tinta ainda aberto. Mas o mais impressionante, para ela, era o galho da linda cerejeira que entrava pela janela aberta.

- Dispa-se rápido e vá para a cama - então se virou para a Stacy - feche o pote de tinta e organize estes papéis, você é muito comportada para viver neste chiqueiro - e saiu, avisando que logo voltaria para apagar a vela.

Tania organizou suas coisas enquanto Anne tirava o vestido, chorando e respirando descompassadamente; vestiu seu pijama, que mais parecia um saco de batatas, e se jogou na cama da morena. Ela não se importou, estendeu alguns cobertores no chão, pegou um travesseiro, trocou de roupa e se deitou ali mesmo.

Ao entrar no quarto e ver a cena, Marilla quase brigou com Anne, mas ficou receosa ao perceber que a garota chorava, e acabou por não dizer nada quando Tania lhe garantiu que não se importava.

- ...Boa noite - Anne se virou para ela e se sentou agressivamente.

- Como pode me desejar 'boa noite' quando sabe que essa é a pior noite de toda a minha vida? - perguntou, chorosa, e tornou a deitar. Marilla saiu do quarto

...

Após vários minutos ouvindo o choro da ruiva, a Stacy desistiu de dormir e desceu as escadas, esbarrando com Mathew no caminho e encontrando a irmã dele, pensativa, na cozinha.

- Oh, olá, Tania. Não conseguiu dormir? - ela perguntou.

- Anne não é exatamente o tipo de pessoa que sofre em silêncio - respondeu, com uma risada anasalada.

- Ah, essa garota!

- Eu gosto dela, acho que vai fazer bem pra nós - disse a mais jovem.

- Como assim?

- Acho que ela vai trazer um pouco de vida e juventude pra cá.

- Você trás vida e juventude pra cá!

- Eu tenho personalidade de avó. Gosto de chá, silêncio, comidas macias e livros - argumentou, rindo. Marilla a acompanhou.

- Então acha que temos idade de avós?

- Não! Quero dizer.. bem.. hm.. ah, você entendeu! - mais risadas - Mudando de assunto, o que acha de uma aula de costura?

- Você machucou literalmente todos os seus dedos e manchou o tecido de sangue da última vez - advertiu.

- É exatamente por isso que eu preciso treinar mais, para que não aconteça de novo - ela não estava errada. Marilla concordou.

...

Tania reabriu as feridas em apenas 9 dedos das mãos, o que já era um avanço, mas em compensação havia deixado a agulha cair e machucado o dedão do pé. Depois da miserável falha, as duas foram dormir.

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Tania acordou ao ouvir Anne falando sozinha

- Espero que este beijo prove a minha devoção, oh grande Rainha da Neve - ela disse à cerejeira, ajoelhada no chão, com um cobertor de renda enrolado no corpo e sobre a cabeça, após ter selado os lábios suavemente a uma flor do galho que havia arrancado da árvore.

- O que está fazendo? - Marilla perguntou ao entrar no quarto. Anne se levantou, deixando a coberta cair da cabeça - Já deveriam estar vestidas.

- Desculpe, acabei de acordar. Dormi muito por ter ido para a cama tarde ontem - a morena explicou-se.

- Lhe avisei que não era uma boa ideia.

- Eu estava imaginando que esta manhã era diferente do que é. Eu estava fazendo de conta que era uma bela princesa e que este era o meu quarto sagrado, no alto de um linda torre de pedr- foi interrompida.

- Chega de tagarelice!

- Desculpe - a ruiva pediu, terminando de colocar o vestido, assim como a Stacy - é só que este quarto e sua linda cerejeira me deram muito alcance para a imaginação - riu de leve - eu.. também desejei, com toda a força, que vocês me dissessem que decidiram que eu posso ficar - suspirou.

- Faça sua mala e desça - falou, curta - vamos levá-la para a sra. Spencer após o café - e saiu do quarto. A ruiva respirou fundo e guardou suas roupas na mala, além de um pequeno galho florido.

- Eu sinto muito que não possa ficar, Anne, muito mesmo! Eu e Mathew tentamos convencê-la noite passada, mas Marilla é muito cabeça-dura.

- Não tem problema - respondeu, com tom de que tinha muito problema.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora