Capítulo 102

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Além do livro de mágicas e das tintas para cabelo, Gilbert também comprara em Charlottetown livros de medicina e sobre o conteúdo que perdera na viagem.

No caminho até sua casa, carregava a enorme pilha de livros com as duas mãos, mas quando Tania estendeu o braço para ele, silenciosamente oferecendo ajuda, Bert passou todos eles para um braço e segurou sua mão com o outro. Ela não conseguiu identificar se ele percebera sua oferta de ajuda e a ignorara, ou se simplesmente assumira que ela queria segurar sua mão; não se importava, de qualquer maneira, gostava de segurar a mão dele. A pele dele sempre esquentava a dela.

Foi um trajeto silencioso e tranquilo, os dois com a cabeça nas nuvens, introspectivos. Nia não pensava em muito, admirando as árvores branquinhas cobertas de neve e o céu perolado, vez ou outra se perguntando que tipo de coisa fantástica teria feito numa vida passada para merecer Gilbert. Já o Blythe pensava em como queria poder protege-la de todo o mal pelo qual ela passara, passava e passaria; ele tentava adivinhar como ela seria se seus pais estivessem vivos, e depois se dava uma bronca mental por pensar naquilo; ele a amava do jeitinho que ela era, mas acreditava que talvez a própria Tania não conseguisse amá-la, e sabia que aquilo seria diferente se tivesse tido alguém para fazê-lo por ela a vida toda.

Sebastian os recebeu com chá e leite bem quentes, e a Stacy fez questão que agradecer em todos os quatro idiomas que falava. Ele a levantou do chão quando a abraçou, e ela riu.

Nia adorava abraçar, dar as mãos, cafuné e todo tipo de carinho; era algo constante na antiga casa dos Stacy, e lhe fizera falta; mas com tudo que acontecera, quando finalmente chegou a Avonlea, já não se sentia bem com o contato (na primeira vez que Gilbert tentou pegar sua mão, ela quase quebrou o pulso dele); com o tempo, conforme confiava mais e mais nos Blythe e nos Cuthbert, se abriu aos pouquinhos para aquela maneira tão boa de dar e receber amor, até se sentir novamente confortável. Àquele ponto, a maneira como estava sempre tocando as pessoas que amava chegava a se destacar, e por percebe-lo Bash não lhe poupava abraços.

Depois de guardar os livros, o casal se aconchegou em uma poltrona perto da lareira acesa para aprender os truques de mágica que tanto os haviam confundido na noite anterior. O livro era cheio de desenhos e setas, que o faziam parecer bagunçado ao folhear, mas ajudavam bastante na compreensão ao ler.

...

- Escolha uma carta - Tania pediu para os irmãos Cuthbert no dia seguinte, estendendo à frente o baralho em leque. Receosa, com a sobrancelha erguida, Marilla retirou uma carta - agora memorize número e naipe, e a coloque no topo do baralho - a mulher assim o fez - corte - Mathew dividiu o monte em dois - coloque a parte debaixo em cima da outra metade - ele obedeceu - um minuto - ela começou a virar nas cartas na mesa até chegar ao rei de ouros, que havia, em segredo, deixado previamente como última carta, e apoiou o baralho na mesa; colocou o dedo indicador no topo, de maneira que ele pudesse ser visto, e o mindinho na parte debaixo, sendo tampado pelas cartas, e ergueu a mão, fazendo parecer que estava levitando o às de espadas - seria essa a sua carta? - sorriu de lado ao ver o queixo de Mathew cair e Marilla levar a mão ao peito.

- Tania Stacy, como fez isso? - exigiu.

- Uma maga nunca revela seus truques - piscou um olho, subindo e descendo das pontas dos pés.

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- Uma palavra ou locução que caracteriza um verbo ou adjetivo é chamada de.? - olhou ao redor da sala. A maioria dos alunos o encarava com um olhar de peixe morto. Anne, Gilbert e Tania liam; Nan estava absorta em Alice no País das Maravilhas, Bert estudava um livro sobre o sistema gastrovascular, e Nia lia algo sobre história americana aprofundada; ela pedira a algumas semanas que Josephine encomendasse da Europa os melhores livros para o vestibular, com foco nas mais prestigiadas universidades, como Sorbonne, Coimbra e Oxford (Lady Margaret ou Somerville). Tania Stacy estava sonhando longe, e precisaria mergulhar de cabeça nos estudos para ter alguma chance de chegar lá. Considerando que o professor raramente ensinava algo que ela não soubesse (à exceção de biologia, mas ela tinha um professor particular muito mais interessante do que Philips naquela matéria), a garota decidiu passar as aulas dele adquirindo conhecimento mais importante, conhecimento que a levaria a uma boa faculdade e um futuro brilhante. O querido tio Anthony lhe prometera novos livros todos os meses, não só sobre o conteúdo do vestibular, mas sobre como montar um bom currículo, como conseguir a atenção de grandes universidades. - Talvez o bom doutor possa responder - Cruzou os braços e observou com ar de desafio o Blythe, que levantou lentamente o olhar do livro, e sorriu.

- É chamada de advérbio, e eu aprendi isto sem qualquer ajuda sua, Phil-

- Senhor - corrigiu.

- Não precisa me chamar de senhor, professor - Tania engasgou uma risada, e sentiu uma vontade inexplicável de beijar o namorado, com força. Ele era tão.. sedutor. Charmoso? Gostoso; ela queria lamber o pescoço dele, e outras partes, verdade seja dita. Eca. Eca, eca, se existisse um Deus, ela lhe implorava que limpasse de sua mente tais pensamentos.

- Correto - o bigodudo disse baixinho, colocado em seu devido lugar.

...

Depois da escola, a Stacy evitou Bert e seguiu apressadamente Anne até o Clube de Estórias. Ou Deus realmente não existia ou estava com raiva de Nia por duvidar dele; de qualquer maneira, passou o resto da aula corada.

As meninas encontraram Cole do lado de fora da casinha de madeira, trabalhando com argila. Tania abriu um largo sorriso, parando de pensar em Gilbert por alguns segundos.

- Oi!

- Olá - limpou as mãos em um pano imundo e entrou na casinha, sorridente, sendo seguido pelas jovens Cuthbert.

A morena colocou uma panela com água para esquentar sobre a fogueira, antes de abrir o pequeno baú que eles usavam como despensa para sacos de café e sachês de chá e pegar o saquinho de café de torra clara, o filtro, uma colher e três xícaras.

- Gilbert pode até saber o que ele quer ser, mas ele tem uma linda conexão com as palavras? - questionou Nan para ninguém em especial, na defensiva; de quem ela sentia precisar se defender, eles não sabiam.

- Com certeza não tão intensa quanto a sua, mas eu diria que sim - respondeu sua irmã.

- Humpf - ela cruzou os braços e fechou a cara - vocês sabem o que serão quando crescerem?

- Espero que feliz - disse Cole.

- Artista. De todos os tipos: escritora, pintora, dançarina, tudo! Farei o que tiver vontade.

- Não me parece um plano muito sólido.

- Mas parece bom, não? - Anne ponderou por um segundo, então bufou de novo e encarou a pequena abelha gordinha que Tania pintara na janela como se ela fosse a fonte de todos os seus problemas.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora