Capítulo 3

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As duas saíram do quarto e desceram as escadas. Anne rodou a casa toda de maneira lenta, tentando memorizar tudo para que aquele lugar virasse um cenário para seus sonhos e histórias; enquanto isso, Tania foi para a cozinha e arrumou os pratos e talheres.

Marilla e a Shirley chegaram juntas à mesa, mas a mais velha foi até o forno antes de se sentar, e teria jogado ali um lindo galho de cerejeira, se a morena não o tivesse pegado de suas mãos e colocado em um copo com água ao lado da pia.

- Hoje eu estou com muita fome - a ruiva disse enquanto passava manteiga no seu pão - o mundo não parece mais um lugar selvagem como era ontem a noite - deu uma mordida no alimento e continuou falando, agora de boca cheia. Se ela desse um jeito de ficar, Marilla ia acabar por colocá-la num curso de boas maneiras - ainda bem que é uma manhã de sol, assim a gente não vai ter que voltar na chuva, isso seria extremamente difícil de suportar. - pausou para engolir - Sabe, é muito bom ler histórias tristes e se imaginar passando heroicamente por elas, mas não é tão fácil quando você está triste de verdad- Marilla a interrompeu.

- Por Deus, segure a sua língua! Você é uma menina que fala demais - Tania ficava imaginando como seria se ela fosse ela mesma na frente da mais velha; provavelmente levaria mais de dez broncas diárias.

- Sim senhora - voltou a atenção para seu prato. Mathew cortou o silêncio constrangedor.

- Só pra você saber, eu mandei perguntar se aquele menino francês ainda está disponível para a colheita - Anne se levantou e bateu as mãos na mesa.

- O que é isso, menina?

- Eu sei ordenhar e cortar lenha - exclamou, rodando a mesa e pegando os pratos de todos - eu sei lavar a roupa, passar, varrer, tirar o pó e sei fazer várias outras coisas; não há limites para o que eu posso fazer se me derem a chance. Agora eu vou cuidar da louça para a senhora e verá que eu sei lavar muito bem - colocou os pratos na pia e direcionou sua energia a lavá-los; depois de apressou até a lareira.

- Cuidado com a chaleira - Marilla advertiu - use as duas mãos - o que a ruiva fez e teria feito mesmo sem o aviso - agora eu vejo claramente que essa sua ideia foi uma tolice - exclamou para o irmão - você não pode criar uma família; parentes, só os de sangue!

- O quê? - Tania se levantou como um furacão, pegou o material escolar e correu para fora, tentando segurar as lágrimas.

Mal olhava pra onde ia, e acabou esbarrando em Gilbert.

- Oh, oi - cumprimentou. Então viu os olhos chorosos da amiga - o que foi? Por que está chorando? - a Stacy não respondeu. Blythe a envolveu suavemente com os braços, e ela desabou no abraço. Depois de alguns minutos, ele a afastou devagar - O que foi? - repetiu baixinho.

- Por que eu nunca pertenço a lugar nenhum?

- Eu não sei responder, e isso é porque tenho certeza de que você pertence a Avonlea. Por que pensaria que não?

- Marilla disse que não se pode criar sua própria família, e os verdadeiros parentes são apenas os de sangue - fungou enquanto o garoto limpava as lágrimas abaixo de seus olhos.

- Ela não tinha te chamado de filha um dia desses?

- Tinha - isso fez suas pálpebras molharem novamente. Blythe tornou a abraçá-la.

- Você é minha família - ele sussurrou.

- Não fala isso.

- Por que não?

- Porque se formos parentes não vamos poder cumprir aquele pacto de nos casarmos se não acharmos ninguém até os 25 anos - Gilbert gargalhou.

- Você não estava triste?

- Estou, mas isso não me impede de te arrancar risadas - o sorriso de pura admiração que apareceu no rosto dele a fez corar.

- Vem, vamos pra aula.

- Nãããão; vamos faltar!

- Por quê?

- Porque eu estou triste e você vai ser muito gentil em me levar pra sua casa e me dar mais uma aula de piano para me animar - lhe encarou com olhos pidões - ou eu vou socar o Billy Andrews e colocar a culpa em você.

- Por quê? - sua voz estava aguda de exasperação.

- Porque ele me irrita e eu sei perfeitamente como te chantagear.

- Você é um perigo para a sociedade.

- Eu sou uma dádiva para a sociedade - corrigiu.

- Bem, dádiva, vamos fazer um trato: você vem pra aula comigo e depois almoça na minha casa e passa a tarde lá para eu te dar uma aula de piano; o que acha?

- Ou, não-dádiva, nós vamos direto para a sua casa, eu faço aqueles cookies que você tanto ama e nós comemos eles durante a aula de piano.

- A sua proposta é extremamente tentadora, milady, mas eu vou ter que negar se quero manter minha reputação de aluno modelo.

- Literalmente ninguém se importa com a sua reputação de aluno modelo.

- Eu me importo com a minha reputação de aluno modelo.

- Exatamente, ninguém - a ficha de Gilbert demorou alguns segundos para cair, tempo que Tania gastou para sair correndo. Ao raciocinar o que ela tinha dito, o garoto foi correndo atrás dela, e quando estava perto o suficiente, chutou uma poça de água próxima na direção da amiga, deixando-a completamente encharcada e de queixo caído - eu não acredito que você fez isso - antes que o Blythe pudesse se desculpar, ela chutou outra poça, molhando-o quase tanto quanto ele tinha a molhado. Os dois caíram na gargalhada e logo estavam em uma guerra de água lamacenta, da qual ambos saíram com frio e quase irreconhecíveis de tão sujos.

- Não podemos ir para a escola assim! - exasperou-se o moreno.

- E este era o meu plano desde o início - cruzou os braços de maneira convencida.

- Fui eu que comecei, espertinha.

- E por que você começou? Porque eu te irritei - manteve um sorriso arrogante no rosto.

- Tá, tá; é melhor irmos à minha casa nos lavar.

- Está me chamando para tomar banho contigo, senhor Blythe? Que inadequado - provocou. Ele a advertiu com o olhar, mas a Stacy não conseguiu levá-lo a sério ao notar a vermelhidão em seu rosto, soltando-se em risadas altas e genuínas. Ela agarrou a mão do amigo e o puxou de volta para a trilha de onde ele havia vindo, sabendo exatamente o caminho da casa do moreno - venha, ande logo, antes que vire uma maçã - ele riu baixo e a seguiu de bom grado.

...

- Oi, tio John - cumprimentou, entrando na casa e pendurando seu casaco no gancho atrás da porta.

- Olá, jovem Tania. Vocês não deveriam estar em aula? E por que estão tão sujos?

- Seu filho malcriado me convenceu a vir acompanhá-lo em um banho após me encharcar de lama - ela disse, falhando em segurar a risada. O sr. Blythe não estranhou, já estava acostumado com as brincadeiras da menina.

- Mentirosa! Pai, foi ela! - brigou, tentando, em vão, não sorrir - Me chantageou com cookies e chocolate quente!

- Epa epa, eu nunca falei nada sobre chocolate quente.

- Se fizer o chocolate quente eu não conto aos Cuthbert's que você matou aula - John propôs. Ele gostava daquele chocolate tanto quanto o filho.

- Fechado!

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora