Capítulo 95

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Conforme o sol abaixava e a noite subia, estrelas pipocavam no céu azul profundo, que escurecia para algo próximo ao anil.

Quando já sumira o último resquício de luz natural, Josephine bateu suavemente uma colher em sua taça de cristal, chamando a atenção de todos os convidados.

- Boa noite - afastou os braços, como se quisesse abraçar todos ali presentes - estou emocionada por estar entre tantos rostos adoráveis - abriu um largo sorriso, que logo se fechou - mas sentimos a ausência de um - respirou fundo - e que rosto era. Ainda me lembro dela, olhando sobre os meus ombros, lendo por cima de mim, sem dar qualquer importância ao decoro - todos riram - foi assim que nos conhecemos, numa livraria em Paris. Uma mulher se apresentou como Gertrude, e disse que eu não queria comprar o livro que estava folheando pois ele era sombrio demais, e no final a protagonista era assassinada! - gargalhadas foram novamente ouvidas - Passei as décadas seguintes escondendo o que estava lendo, já que ela não podia deixar de me contar o fim de cada romance ou peça de teatro - Tania riu, cutucando a irmã; "você é assim" disse sem som; "shh" - ela também tentou me deixar pobre - ergueu as sobrancelhas - gastando todo o meu dinheiro em arte. E vejam o que me restou, nada além de um salão cheio dos amigos mais maravilhosos - levantou a taça acima da cabeça - à Gertrude! Que ela leia por cima dos nossos ombros pela eternidade.

- Ao casal mais incrível - acrescentou tia Gaby, que usava uma cartola - meu ideal romântico e maior inspiração - limpou a garganta, emotiva - Gertie e Jo!

- Gertie e Jo! - o coro de pessoas respondeu. As irmãs Cuthbert tinham lágrimas nos olhos, e não eram as únicas.

- E agora - continuou tia Josephine, se recompondo - para recitar pela Gertrude, eu convido a surpreendente, ávida e muito inteligente, Anne Shirley Cuthbert.

Subindo o degrau da escada onde estava a senhorita Barry, ao som de aplausos, a ruiva abriu o livro na página que recitaria.

- "Agora me lembrei que o mundo real é amplo, um campo vasto de esperanças e medos, de sensações e excitação, aguardando aqueles que tem a coragem de ir adiante, para buscar o conhecimento real da vida em meio aos seus perigos."

Entre a salva de palmas, Nia comentou:

- Ela nasceu para declamar, não é?

Diana, com a aparência de quem passava por uma crise existencial, assentiu.

- Ainda me lembro de quando ela declamou logo que entrou na escola; Anne realmente tem o dom - concordou Gilbert.

O que ninguém via, era que a tia Jo havia saído pois estava chorando demais e, em busca de um local mais quieto, Cole a encontrara.

- ..Gertrude amava minhas lágrimas... o mundo tinha tantas cores através dos olhos dela! - dissera. Então, quando uma música específica começou a tocar - Essa era a favorita dela.

- ..Você gostaria de dançar, senhorita Josephine? - ele perguntou após um segundo de hesitação.

- Eu receio que gostaria.

E ali, naquele cantinho afastado de toda a balbúrdia, os dois conseguiram diminuir um pouco a dor um do outro.

...

Música atrás de música, os seis amigos de Avonlea dançavam. Primeiro, Tania dançara com Nan, então com Bert, e naquele momento com Ruby.

- Ah Biby, não é esta a noite mais esplêndida que poderia existir?

- É sim, Nia - rodopiou a amiga, com um sorriso vibrante - conheci tantas pessoas extraordinárias!

- Os amigos da tia Jo são os mais interessantes do mundo todo, disso não tenho dúvidas - levantou a Gilles no ar, e esta gargalhou de alegria.

- Vi tantos indivíduos que nunca imaginei poderem existir! Meninos que usam vestidos e maquiagens, garotas que cortam os cabelos curtos e amam outras garotas, pessoas com roupas extravagantes e penteados ainda mais chamativos! Dançarinos de todos os tipos, gente vinda dos cantos mais longínquos do mundo, mulheres tremendamente altas e homens pequeninos - suspirou em êxtase - são todos tão criativos, e agora sinto que existem mais perspectivas do que jamais poderia pensar. Não é fabuloso?

Antes que a Stacy pudesse responder, uma pomba saiu voando do chapéu do mágico e quase derrubou sua coroa.

- Desculpe - o homem o pediu, recuperando a pomba.

- Sem problemas! - respondeu sorridente, já girando para longe dele enquanto acompanhava os outros dançarinos.

A noite avançou e os convidados foram embora, e logo estavam os seis jovens no quarto das meninas. Anne valsava com Cole.

- Vou trocar minhas mangas bufantes por uma cartola. Ou usá-las juntas porque, talvez, esta seja eu - concluiu a ruiva com graciosidade.

- Eu quero experimentar um terno - disse Ruby, penteando os cabelos em frente ao espelho - acredito que sempre amarei os vestidos, mas preciso usar um terno ao menos uma vez.

- Estou decidida a pintar os cabelos - acrescentou Tania - logo terei cachos azuis e violetas, guardem minhas palavras - estava enroscada no namorado, deitada na ampla cama de dossel.

- Você está embriagada, Nia, não tome decisões nessa condição - riu Cole.

- Bebi apenas uma taça de champanhe - se defendeu.

- E uma de vinho, e um shot de whisky - acrescentou Gilbert, brincando com a barra na camisola dela, que fez bico - está completamente sem filtros ou limites, Fadinha.

- Encontro-me perfeitamente consciente de minhas ações, obrigada - se defendeu - estou dizendo, vou pintar o cabelo; caso não acreditem, pagarão com as línguas.

- Não duvido de nada vindo de Tania Stacy - Biby falou, se jogando na cama ao lado da melhor amiga.

- E é por isso que você ganhou o jogo de quem me conhece melhor - deu um peteleco no nariz dela.

- Ei, calma lá! - brigou Bert - Eu ganhei - franziu as sobrancelhas.

- Juízes - gritou a loira, e eles pararam de dançar - quem ganhou?

- Foi um empate - Mackenzie explicou, se sentando com Nan ao lado de Diana na outra cama. Blythe e Gilles se puseram a discutir.

- Di, por que está tão quieta? - Nia estranhou, ignorando-os.

- A tia Josephine manteve seu estilo de vida em segredo, meus pais certamente não sabem. Isso quer dizer que é errado, não é? - passou os olhos pelos amigos, desolada. Eles ficaram em silêncio.

Antes que qualquer um pudesse discordar da Barry, Anne pegou de uma poltrona o livro que recitara e abriu na folha de rosto.

- "À minha Gertrude. Alguém se lembrará de nós, eu digo. Mesmo que seja em outro tempo. Meu coração será sempre seu. Jo." - recitou. Nia se aconchegou mais no namorado - Diana, como pode pensar ser errado quando palavras tão lindas foram escritas de uma à outra?

- N-não é natural - disse, abraçado os joelhos.

- Se a sua tia viveu a vida pensando que havia algo errado com ela, que ela estava errada, defeituosa e fora do normal; então um dia, ela conheceu alguém que a fez entender que aquilo não era verdade, que não havia nada de errado com ela, e que estava tudo bem.. não deveríamos ficar felizes? - discursou Cole. Ruby, emotiva como era, estava à beira das lágrimas.

- Diana, não é um alívio descobrir que amor pode vir em mais formas do que você pensava que ele viria? Que as possibilidades são infinitas? - adicionou Tania, se levantando da cama para apertar o loiro nos braços. Seria ele como tia Josephine? Ela sempre pensara que sim, mas não se atrevia a perguntar. Soltou-o com um beijo no topo da cabeça.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora