Capítulo 36

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Então, na tarde seguinte, após passar a manhã toda enchendo os pés de bolhas e o corpo de dores (ensaindo), Tania guardou as sapatilhas, meia-calça, collant e saia em uma mochila, prendeu o cabelo em um coque apertado e colocou tudo na charrete com Anne e Jerry, rumo a Charlottetown.

- Diana - cumprimentou Marilla, que por sorte não havia visto a garota entregar a Anne uma bela e cara escova de cabelo prateada para vender.

- Olá senhorita Cuthbert, só vim me despedir - mentiu.

- Cheguem à casa da senhorita Barry antes do anoitecer. Tenham cuidado.

- Nós teremos - Tania jurou, beijando-lhe a bochecha, antes de subir na parte de trás da carroça e se acomodar nas coisas, abrindo seu caderno e pondo-se a escrever; parecia que haviam se passado anos desde a última vez que ela escrevera.

- Diga para o Mathew não se preocupar - pediu Anne, antes de beijar também a bochecha da mais velha - vai dar tudo certo, vocês verão - e subiu na parte da frente da charrete, ao lado de Jerry, que começou a conduzir.

Quando se afastaram de Greengables, Jerry decidiu puxar papo com Anne.

- Não tem problema pedir ajuda de vez em quando, sabe?

- Se precisasse de ajuda, eu diria.

- Não diria, não.

- Diria sim.

- Não diria.

- Diria! Vezes infinito - sorriu vitoriosa.

- O quê?

- Ah, esquece. Não quero conversa.

Mais a frente no caminho, enquanto corria a pena pelo papel, Tania começou a murmurar uma música francesa da qual gostava, e ao identificá-la, o Baynard passou a acompanhá-la, para a profunda irritação de Anne, que o considerava bastante desafinado.

- Je veux de l'amour, de la joie, de la bonne humeur
Ce n'est pas votre argent qui f'ra mon bonheur
Moi, j'veux crever la main sur le cœur

- Pa pa para, pa pa paraa - a Stacy deixou de murmurar para cantar ativamente, com habilidades questionáveis.

- Allons ensemble découvrir ma liberté
Oubliez, donc, tous vos clichés
Bienvenue dans ma réalité

E pelo resto do caminho, Jerry, com sua "voz de taquara rachada", como Ruivinha descreveu em segredo para Diana no dia seguinte, e Tania, que era um pouco melhor, cantaram todas as músicas da Zaz das quais se lembravam, para a agonia de Anne, que queria levar aquela aventura um pouco a sério demais.

Em Chalottetown, as garotas foram até a loja de roupas da senhora Jeanne, para que a Shirley devolvesse o vestido que Mathew havia comprado para ela, e a Stacy vendesse alguns dos seus vestidos que estavam em melhores condições, além de algumas roupas dos pais que ela sabia serem de excelente qualidade.

Ao entrar no local, Anne ficou atônita, como se tivesse acabado de entrar no guarda-roupa e o senhor Tumnus a estivesse recepcionando.

Ao notar a caixa nas mãos da garota, Jeanne a trouxe de volta para o mundo real.

- Olá, vejo que você já esteve aqui.

- Só nos meu sonhos - os olhos da cor do gelo brilhavam como o mar em uma noite de luar.

- Em que eu posso ajudá-las? - a mulher sorriu.

- Eu vim devolver um vestido - ela explicou, colocando o embrulho na bancada em frente à senhora.

- Há algo errado com ele?

- Nadinha.

- Você não gostou?

- Ele é a minha coisa preferida e a mais linda que já tive na vida. Mas tenho que devolvê-lo para ajudar minha família.

- Você é a Anne - exclamou Jeanne ao ver o vestido que ela mesma havia feito - a Anne do Mathew!

- Eu sou, e é muito bom ouvi-la dizer dessa forma.

- O que houve, queridas? Por que precisam de ajuda?

Perdendo as forças, Anne começou a chorar, e a senhora Jeanne a abraçou, enquanto Tania respirava fundo e explicava.

- Estamos com dificuldades financeiras, e como Mathew precisa de repouso para se recuperar do ataque cardíaco que teve, estamos vendendo tudo o que for possível para pagar o empréstimo do banco.

- Venham - a mulher chamou, mas a morena não a seguiu.

- Senhora, sinto muito mas não posso ficar, estou certa de que Anne pode negociar com a senhora todas as roupas que tenho para lhe vender, e preciso mesmo ir para a audição do teatro.

- Ora, mas é claro querida. Você dança ballet?

- Desde os 3 anos - sorriu orgulhosa - eu poderia usar o provador para me trocar?

- Sim, fique a vontade - guiou-a até o provador. Quando Tania saiu dali, vestida de maneira simples com seu collant preto e saia branca de trilobal, Jeanne soltou uma exclamação - ah, não, não, você não vai se apresentar no teatro com essa roupa, tenho figurinos de ballet na loja, escolha qualquer um, e ele é seu.

- Ah, não, senhora, não posso aceitar.

- Pode e vai - disse, imutável, e saiu do cômodo, voltando com um figurino preto decorado com renda dourada e pedrarias - este lhe servirá, ficará deslumbrante - contendo as lágrimas nos olhos, a jovem foi ao provador, e precisou de um minuto apenas para se olhar no espelho; ela parecia um ser etéreo e mágico, não lembrava da última vez que havia se sentido tão bela.

Então virou as costas para o espelho.

E lá estavam, as grossas e feias cicatrizes que decoravam suas costas.

Ela sabia que, a partir do momento que ganhara aqueles vergões, jamais seria perfeitamente bonita novamente.

Mas daquela vez, só aquela vez, ela não se importaria. Estaria dançando, afinal, ninguém estaria prestando atenção nas imperfeições de seu corpo.

Saiu do provador com um sorriso nos lábios e as sapatilhas de ponta pretas compradas em Carmody nos pés.

A grisalha e a ruiva sorriram largamente, com admiração clara no olhar.

- Muito obrigada - Tania abraçou Jeanne apertado, antes de trocar as sapatilhas por botas e vestir o casaco por cima do figurino - o devolverei pra a senhora em perfeitas condições ao fim do dia, garanto - Jeanne suspirou, conformada de que a menina não ficaria com a roupa, e abriu a porta para ela, que foi a pé até o majestoso teatro de Charlottetown, onde se lia, ao lado das portas, o anúncio:

Audições para o teatro musical

Estão convidadas a audicionar bailarinas acima de 12 anos que possam se apresentar a todas as noites de Sexta-feira e Sábado pelos próximos dois meses.

Os testes começam às 3pm e vão até as 6pm, quando serão anunciadas as três mulheres admitidas.

O salário por apresentação será de 125 dólares.

Esperançosa, Tania entrou no enorme teatro, encontrando uma quantidade considerável de garotas espalhadas pelos assentos, e uma quantidade maior ainda na fila para audicionar.

Aquela seria uma competição difícil.

...

Quase uma hora depois, tendo passado os últimos 45 minutos repassando a coreografia na cabeça enquanto se alongava, ela subiu no palco, e um medo atordoante de esquecer os passos enquanto dançava a atingiu em cheio.

Rezou para o pai, lhe pedindo paz e sucesso, e, tendo a certeza de que ele a ouvira e estava lhe assistindo, subiu nas pontas dos pés, e começou a dançar.

Qualquer nervosismo se esvaiu instantaneamente de seu corpo, e ela foi preenchida e extasiada pela sensação de liberdade que o ballet, sua paixão, lhe causava.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora