Capítulo 108

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Como, por sorte, Tania ainda estava abraçada a ele, conseguiu impedi-lo de cair no chão. Com muito cuidado ela o deitou e sentou-se, apoiando a cabeça do namorado no colo.

- Senhoras e senhores, Doutor Blythe - disse Bash, e ela soltou uma gargalhada.

- Como o acordamos, Doutor Ward?

- Wilson, por favor. Deixe-o descansar, vou dar os pontos e então o acordamos.

- Está bem.

Enquanto Wilson concertava a gengiva esfrangalhada de Sebastian, Nia fez tranças nos cabelos do namorado desmaiado.

..

Com Bash devidamente curado, Dr. Ward aproximou uma erva de cheiro forte do nariz de Gilbert, que se franziu, antes de o garoto acordar num pulo.

- Não sei se medicina é para você, Blythe - seu amigo caçoou.

- O que aconteceu? - olhou para o médico, e então para a Stacy.

- Você desmaiou - explicou a um Bert comicamente confuso.

- Quer ser médico, certo? Tem certeza? - o doutor sorriu.

- Sim.

- Nunca é bonito de se ver.

- Ele leva jeito - Sebastian defendeu - na maior parte do tempo - acrescentou, zombeteiro.

- É uma grande notícia - disse Wilson, enquanto Tania ajudava o moreno a se levantar.

- Esses dias vive com o nariz metido em um livro. Os dois. Nerds - a menina lhe deu língua - está pronto, Blythe? - vestiu o antigo casaco de lã de John.

Gilbert não respondeu. Seu cérebro parecia trabalhar furiosamente, até que ele falou:

- Dr. Wilson, precisa de um estagiário? Talvez eu pudesse ajudar aqui de vez em quando. E, em troca, me ajudaria com meus estudos. Prometo não ficar desmaiando - sorriu. O médico se esforçava para segurar uma risada que não tinha nada haver com as palavras do jovem; seus cabelos eram uma proeza a ser admirada.

- É meu privilégio ser seu mentor. Estive pensando que seria bom dividir meu aprendizado.

- Combinado! Agora vamos ao Gueto - chamou Bash, já à porta.

- Nunca vi alguém com tanta pressa pra chegar na favela - admirou-se sr. Ward.

- Imagino que seja um belo lugar onde os negros dançam na neve - riu alto.

Gilbert franziu a testa e Tania deu risada.

- Ele está bem, é só o efeito da anestesia.

- Quanto eu lhe devo, doutor?

- Nada, se for ajudar aqui. Tenho tempo até o próximo paciente, se quiser começar a conversar.

Bert olhou para Bash.

- Pode me encontrar aqui daqui a uma hora?

- Você pode vir me buscar, se conseguir me encontrar; vou me misturar - e, com um sorriso um pouco chapado, beijou o topo da cabeça de Nia e saiu do consultório.

Depois de rir um pouco, Bert se virou para a namorada.

- Amor - segurou o rosto dela entre as mãos - se importa de eu perder o começo do seu ensaio hoje?

- Não - respondeu com um sorrisinho - que eu saiba, você nem tem autorização para assistir, o começo ou qualquer outra parte - ele riu de levinho e beijou a ponta do nariz gelado da Stacy.

- Te amo.

- Te amo - devolveu o beijo - a propósito - já ia saindo enquanto vestia o casaco - eu fiz trancinhas no seu cabelo. Está adorável - com uma piscadela, fechou a porta.

No caminho até o teatro, Tania pensou. Muito.

Estivera quieta durante toda a conversa sobre o 'estágio' de Gilbert. Pensando.

Apenas estar naquele consultório o fazia se sentir mal, o que era de se esperar, é claro. Será que lhe faria bem ir ali toda semana? Bert sempre fora uma pessoa muito forte, aguentaria o tranco. Mas talvez os malefícios daquilo superassem os benefícios. Ela precisava falar com ele, Blythe deveria pensar muito bem antes de se submeter àquilo; Nia sabia que era mais sensível do que a maioria das pessoas, mas passar horas e horas no consultório onde seu pai fora diagnosticado seria tortura.

No Teatro de Charlottetown, ela calou os pensamentos e se forçou a focar apenas na dança.

...

Quase quatro horas depois, ela e Gilbert saíam de uma lanchonete com cafés quentinhos em mãos, Tania ainda de collant sob o casaco, as sapatilhas penduradas nos dedos. Eles caminhavam sem pressa nenhuma até o Gueto, para encontrar Bash. Bert estava animadíssimo com o estágio, gesticulando enquanto falava incansavelmente sobre tudo que aprenderia com o doutor Wilson, como aquilo o ajudaria a entrar em uma faculdade boa, que o ajudasse a fazer alguma diferença. Era o que ele queria. Fazer a diferença. Salvar vidas, revolucionar a medicina. Curar doenças que eram consideradas incuráveis.

Ela apenas ouvia, sorrindo suavemente. Gilbert Blythe tinha sonhos tão grandes, tão lindos. Ele queria fazer o bem, pura e simplesmente. Como um super-herói das histórias. Nia se orgulhava de ser dele, e de tê-lo para si.

Entretanto, ainda se preocupava.

Os dois já procuravam por Bash a meia-hora quando entraram em uma lavanderia e encontraram quatro mulheres rindo dele, que tentava justificar o fato de estar usando três calças ("Não me dou bem com o frio").

- Sebastian!

- Te procuramos por toda parte - brigou Bert, fechando a porta - o que aconteceu? Por que está seminu em um recinto cheio de mulheres?

- A sorte sorriu para mim - a Stacy gargalhou da resposta - senhoritas, estes são meus amigos, Gilbert Blythe e Tania Stacy.

- Me desculpem - o garoto pediu imediatamente, tirando o chapéu. Seu cabelo ainda estava trançado - perdão.

Duas das moças um tanto magras e ossudas trocaram um olhar.

- Como você se chama? - a mais baixa perguntou ao homem.

- Sou Sebastian, mas pode me chamar de Bash, Bastian, Trini. Do que preferir.

- Ele está caindo de anestesia ou de amores? - Tania sussurrou para o namorado, que deu risada, antes de olhar para o relógio de pulso e limpar a garganta.

- Perdemos o trem, teremos de achar um hotel. Podem recomendar algum? - perguntou, um resquício de riso ainda nos lábios.

- Que hospede negros? - perguntou uma moça rechonchuda e com cara de atrevida - Boa sorte.

- Conheço alguém - disse a mesma mulher baixa e magricela de antes - que tem um quarto disponível. Ela aluga para quem precisa. - pegou uma calça coloridíssima de um baú e levou para Bash - Nunca vieram buscar.

- Imagino o porquê - ironizou com um sorrisinho.

- É o melhor que tenho.

- E como se chama essa deusa que ajuda os viajantes desavisados? - ela ficou quieta por alguns segundos, correndo os olhos por todo o rosto dele.

- Mary.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora