Capítulo 107

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A senhorita Loretta Locke tinha orgulho de dizer que nunca se casara. Morava em um Chalé na estrada entre Carmody e Avonlea, sozinha com seus cachorros e tecidos (ganhava a vida vendendo roupas nas cidades próximas). Quando jovem, recebera dezenas de pedidos de casamento, mas não aceitara nem unzinho. Seus lábios jamais haviam tocado os de outra pessoa, e ela não fazia ideia de como era sair toda desalinhada de um armário de vassouras.

Então, quando dois jovens muito bonitos e bagunçados saíram da portinhola no canto de seu vagão, ela ficou confusa com seu estado; teriam eles brigado lá dentro? Loretta se perguntou se deveria dar uma bronca no garoto: quem ele pensava que era para brigar com uma menina? Entretanto, a mocinha parecia tranquila enquanto segurava a mão dele. Franzindo ainda mais a testa já um pouco enrugada, a senhorita Locke decidiu esquecer o assunto.

Recuperando o fôlego enquanto continuavam sua caminhada pelo trem, Tania e Gilbert trocaram sorrisinhos.

- Você ainda não me respondeu - sussurrou no ouvido dela.

- Não, Gilbert Blythe, não há nada mais errado do que o resto. No momento, não há nada errado e ponto - se aproximou um pouco mais dele - vamos voltar?

- Está bem - insistiria na pergunta mais tarde.

Pouco antes de entrarem no vagão onde estavam Rachel, Marilla e Sebastian, eles se lembraram de ajeitar os cabelos e desamassar as roupas.

Sentaram-se em um dos bancos macios, ao lado de Bash. Por baixo da mesa, Bert colocou a mão na coxa da namorada e, mesmo com a saia separando sua pele da dele, ela engoliu em seco. Ele lambeu os lábios e deu um apertão que quase a fez dar um pulo. Então apenas deixou a mão ali, conversando com Marilla como se nada estivesse acontecendo. Para quem mal conseguira falar ao ser pego por Greg e Anthony na festa, ele era um grande sem-vergonha.

- Como você está, Tania? Gilbert? - perguntou a sra. Lynde, como quem não quer nada, ao notar os lábios inchados do casal.

- Bem, senhora Lynde, obrigado. Quando ando de trem, não consigo evitar pensar na viagem que fiz com meu pai - desviar o assunto para o pai morto; sempre funcionava. Ele se sentiu uma pessoa horrível por um segundo, antes de se lembrar que seu pai riria da 'estratégia'.

- Foi difícil? Viajar com o John tão mal da saúde? - perguntou a srta. Cuthbert, sempre muito preocupada.

- ..Ele amou cada minuto - trocaram sorrisos - na realidade, estamos levando Bash ao médico dele... Acho que as meninas não te contaram, mas pretendo estudar medicina - Gilbert Blythe, apesar de uma pessoa incrível, era um pouco arrogante; gostava de impressionar, e todos o admiravam quando lhes contava aquilo.

- Nossa, isso não seria maravilhoso? - Rachel olhou para Nia, como se dissesse "veja que bom partido você arranjou, um médico!"

- Finalmente um médico em Avonlea - acrescentou Marilla - seu pai estaria orgulhoso.

- E feliz de eu ter voltado para casa.

- Como todos estamos - a morena beijou-lhe o ombro.

- Entretanto, devo admitir que voltar para uma escola com um professor patético talvez não tenha sido a melhor decisão - zombou com escárnio.

- O sr. Philips se mudará após o casamento - sra. Lynde consolou, apesar de não entender a antipatia pelo professor.

- Espero que quem tomar o lugar dele esteja interessado em lecionar - respondeu Tania; eles estavam se divertindo em criticar Philips.

- Minha surpresa! - sobressaltou-se a Cuthbert de repente - Já ia me esquecendo - tirou um belo embrulho de sua cesta - Anne fez para mim, ordenou que abrisse no trem.

- Está bonito. Cenourinha sempre faz as coisas com uma dedicação impressionante - Marilla o advertiu com o olhar pelo apelido, e a Stacy riu.

- Fico me perguntando qual vocação, entre todas as suas paixões, ela escolherá quando for a hora - abriu o bilhete que a ruiva deixara, "para adoçar sua viagem". Sorriu.

- Anne Shirley Cuthbert é uma pessoa apaixonada, com certeza - disse Bash, que acordara de seu cochilo ao sentir o cheiro de doces.

- Solavancos não o acordam, mas bolinhos resolvem, não é? - Nia caçoou.

Mal eles terminaram de comer o presente de Anne, chegaram a Charlottetown.

Os ensaios começavam às três e meia da tarde, então Tania teria tempo de ir com Gilbert e Sebastian ao médico. Separando-se de Marilla e Rachel com abraços rápidos, os três seguiram até o consultório.

O caminho foi cheio de risadas, como sempre era com eles. Lá, uma secretária um pouco excêntrica de cabelos loiros bastante cacheados os recebeu e disse que poderiam entrar, estando o dr. Ward desocupado.

- Gilbert Blythe! Quanto tempo - sorriu abertamente quando os três adentraram seu consultório.

- Sim - se cumprimentaram com um aperto de mãos. O homem apoiou a mão calosa no ombro de Bert.

- Senti muito quando soube do seu pai - olhou para os outros - e quem trás com você?

- Estes são meu amigo, Sebastian, e minha namorada, Tania. Sinto em encurtar as apresentações, mas é uma emergência.

- Estou vendo - o senhor Wilson Ward tratou de conduzir Bash, cuja bochecha ainda parecia conter uma maçã, à mesa de exame.

- Quem precisa de ajuda é o Blythe; cure a mania dele de achar que sabe o que é melhor para todos.

- Já ouvi isso antes nesse consultório - riu-se o médico. Gilbert revirou os olhos - abra, deixe-me ver - pediu a Sebastian, que obedeceu - isso é um crime!

- Culpe a ela - rebateu, apontando para a garota, que colocou a mão sobre o coração e abriu a boca, danada da vida.

- Fui coagida - defendeu-se - a necessidade de silêncio prejudicou-me o bom senso - Blythe riu um pouquinho.

Ao observá-lo com mais atenção, ela percebeu algo que deveria ter esperado: ele estava desconfortável. Torcia a camisa na mão direita, enquanto flexionava os dedos da esquerda; Nia deveria ter sido mais atenciosa, era óbvio que ele se sentiria mal no lugar onde seu pai recebera o diagnóstico, onde estivera tantas vezes na pior fase de sua vida. Se deslocou discretamente até estar atrás dele, então envolveu seu tronco com os braços, beijando suas costas por cima da camisa. Pode sentir claramente os músculos retesados relaxarem um pouco, enquanto as mãos dele paravam o que faziam para acariciar as dela.

- Tem febre causada pela infecção - o doutor concluiu - darei algo para resolver ambos problemas. Precisará de alguns pontos - disse a Bash, que se levantou com esforço.

- Desculpe ser rude, mas não posso ficar. Haverá médicos que podem me ajudar no Gueto - a Stacy sentiu Gilbert ficar novamente tenso, mas o sr. Ward respondeu por ele:

- O único que pode ajudá-lo lá é o barbeiro, que tira dentes com um alicate enferrujado.

Sebastian hesitou por um segundo, antes de se deitar novamente, resignado.

- Novo plano: cuido disso aqui, e aí vamos pro Gueto - Bert apenas assentiu.

Wilson Ward ergueu a injeção afiada da anestesia.

Gilbert Blythe desmaiou.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora