Capítulo 32

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- Oi, fadinha - mostrou sua presença, tirando o casaco e colocando-o no gancho, ao lado do da menina.

- Oi - sorriu para ele, servindo duas canecas com o líquido espesso. Gilbert não deixou passar a leve careta que ela fez ao andar - por que demorou tanto?

- Estava falando com Marilla. Você sabia que ela e meu pai estudaram juntos?

- Não tinha ideia. O que ela estava fazendo aqui? Me procurando?

- Visitando o túmulo do meu pai - pegou a caneca quente que lhe era oferecida - não vai pôr gelo? - indicou a região das costelas da amiga.

- Quando eu chegar em casa.

- Não sabia que você tinha um freezer - a casa dele era uma das poucas com eletricidade na cidade.

- Não tenho, mas esta nevando - disse indiferente - é só colocar água em pote e ficar lá fora por um tempo; bum! Gelo.

- Ou você pode simplesmente usar um daqui.

- Com certeza vou tirar o vestido na sua frente - ironizou. Ele deu de ombros.

- Já fomos à praia juntos.

- Éramos crianças.

- Que diferença faz?

- Que a senhora tentou me beijar a alguns dias atrás.

- Tínhamos concordado que aquilo foi um surto induzido pelo luto. E se te deixa tão desconfortável, eu posso simplesmente ir para outro quarto, porque se tem algo que não vou fazer é te deixar ficar com dor por um soco que levou por minha causa - disse firme.

- Não foi por sua causa.

- Esse não é o ponto - foi até o freezer, pegou um cubo de gelo, embrulhou em um pano fino e entregou para ela, já se dirigindo para as escadas.

- Bert, espera - ele parou onde estava, a poucos passos dela - me ajuda a abrir o vestido, o zíper deve estar emperrado por conta da neve - Blythe ergueu uma sobrancelha.

- Isso é uma desculpa pra se exibir pro seu futuro marido? - provocou, rindo quando ela lhe deu um tapa forte no braço - Tá bom, desculpe - se aproximou mais da garota, que estava sentada à mesa, já de costas para ele. Com dificuldade, Gilbert puxou o zíper prateado para baixo, se deparando com as grossas cicatrizes que ele havia visto a poucos anos, quando foram à praia; estas eram parcialmente cobertas pelas roupas de baixo de Tania, mas as partes visíveis dos vergões não deixaram de lhe causar arrepios.

Ele definitivamente nunca perdoaria quem havia feito aquilo com ela. Nunca.

- Estou sentindo seus olhos queimando nas minhas costas - a menina comentou em tom casual, fazendo Gilbert desviar o olhar.

- Desculpe - se sentou ao lado dela, que, sem realmente se importar, considerando que a roupa debaixo cobria todo o espaço da barriga à clavícula, deixou cair a parte superior do vestido. Ele mantinha os olhos no rosto dela, não se atrevendo a olhar para a pouca pele exposta, e ela riu ao perceber o esforço.

Quando encostou o gelo no suave hematoma, seu rosto inteiro se franziu, demonstrando uma dor maior do que era de se esperar de um machucado superficial como aquele.

- Está tudo bem? - ele se preocupou - Machucou muito?

- Não - parou de olhar para o próprio abdome para fixar os olhos no rosto dele - quebrei a costela alguns anos atrás, acho que nunca curou completamente - deu de ombros, fazendo uma careta ao realizar o movimento.

- Como você quebrou a costela? - estranhou.

- Lembra daquele padre que eu falei? - Gilbert engoliu em seco, assentindo - Não é como se eu fosse exatamente uma criança que se deixa ser enganada por um pervertido, não foi algo voluntário - olhou para baixo, se perguntando se deveria mesmo estar dizendo aquilo - mas estar com a costela machucada deixava difícil reagir - não teve coragem de olhar nos olhos dele enquanto lhe contava aquilo; não era algo que se deveria contar para as pessoas.

- Tania, isso é horrível - disse após uma pausa indignada - é vil e cruel, e-

- Já passou - colocou um ponto final no assunto. Ponto final que Gilbert transformou em ponto e vírgula.

- Quantos anos você tinha?

- 9 - ele estava cada vez mais agoniado. Só a ideia de que alguém seria capaz de cometer tal atrocidade fazia seu estômago revirar - não fique pensando nisso, você está com cara de que vai passar mal.

- Você disse que ele quase te matou - ela assentiu, com um suspiro cansado - ... - ele respirou fundo, sentindo que não deveria perguntar aquilo, mas perguntando de qualquer maneira - como sobreviveu? - ela finalmente voltou a olhar para ele - Quero dizer, não imagino que o objetivo do padre fosse que isso se espalhasse - continuou - ele foi preso, não foi?

- Acha mesmo que alguém acreditaria? - Gilbert arregalou os olhos.

- Não acreditaram em você? - aquela história estava deixando-o cada vez mais raivoso.

- Em quem você acreditaria? Numa menininha órfã e bagunceira que muito provavelmente já tinha feito alguma pegadinha inconveniente com você, ou no padre respeitado que pregava o amor de Deus e distribuía sopa quente nos dias frios? - sua voz era tão suave que ela nem parecia se importar.

- Eu.. por Deus, Tania, isso é inacreditável!

- É o que estou dizendo - riu.

- Não, sério - ele mal conseguia colocar sua exasperação em palavras - é...

- Não é ilegal.

- O quê?

- Mesmo que alguém tivesse acreditado, não tem nenhuma lei a respeito disso, ele não seria preso. Você não faz ideia da quantidade de mulheres que são abusadas pelo próprio marido; já é basicamente cultural a mãe explicar pra filha que o que ela sente não importa, que é o dever dela como esposa fazer as vontades do homem nojento que recebeu a mão dela em troca de terras, prestígio ou seja lá mais o quê.

- Sua mãe te ensinou isso? - o Blythe ficava mais atônito a cada segundo.

- Nunca - sorriu - minha mãe me ensinou a me defender. Não que tenha sido muito útil - tirou o gelo de cima do machucado para expor a pele arroxeada, com um sorriso triste.

- Eu não tinha idei-

- É claro que não - interrompeu - não te afeta - deu de ombros, mantendo um sorriso desdenhoso - na verdade te beneficia - concluiu. O lábio inferior de Gilbert tremeu, conforme ele absorvia tudo aquilo - desculpe; não pensa nisso, Bert, sério. Não vai te fazer bem - insistiu. Blythe recostou as costas na mesa, a testa franzida no mais absoluto choque - desculpa por ter continuado o assuntou, não é problema seu.

- É claro que é problema meu, é problema de todo mundo! - exasperou-se mais ainda - Como ninguém nunca tentou.. mudar isso?

- Gilbert, pensa comigo: quem tem influência na sociedade?

- Pessoas em posições de autoridade?

- Homens. - ele ficou parado, as informações começando a se organizar em sua cabeça - Além disso, mesmo que tivessem a oportunidade de mudar isso, acho que a maioria das mulheres não faria nada - ele franziu a testa para ela, um vinco profundo entre as sobrancelhas - eu já expliquei, Bert: é normal! Comum! Não é visto como ruim, só como necessário. Por exemplo, sua vida toda seu pai te ensinou que você precisa ir à escola, certo? - ele assentiu - E se eu de repente te dissesse que é errado? Que é ruim e faz mal? Você acreditaria? - ele finalmente havia entendido.

- Não - seu olhos estavam cheios de água - e eu também não acreditaria na menininha - admitiu, secando a bochecha com as costas da mão.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora