Capítulo 90

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- A cada vez que um artista expõe o que está em seu coração, o mundo se torna um lugar melhor - sussurrou a próxima parte para que apenas ela ouvisse - você não quer melhorar este lugar infernal? - abriu um sorrisinho rebelde - Não quer lutar contra a ignorância? Colorir um pouco algumas vidas cinzentas e miseráveis? - Tania sabia que nem todos pensavam daquela maneira; Anne, por exemplo, via o mundo com um lugar vívido e animador. Mas Trystia entendia, ela via aquela dor horrenda que estava por toda parte, e também sentia raiva, tanta, tanta raiva da injustiça que regrava a vida.

- E-eu quero - limpou a garganta - eu quero - repetiu com mais firmeza.

- Então pegue o caderno que eu sei que está debaixo do seu travesseiro e faça a sua magia - despachou-a com uma piscadela, e aquela pequena artista foi às pressas melhorar o mundo; parecia uma missão tão grandiosa!

- O que disse a ela? - perguntou a cozinheira, admirada - Tenho tentado convencê-la a semanas - exclamou.

- Eu e Trystia nos entendemos - deu de ombros - ela só precisava ser devidamente encorajada - sorriu enquanto suspirava profundamente.

- Aquela menininha ainda vai mudar vidas - disse Dona Polly, que era bastante sábia e raramente cometia erros a respeito do destino das pessoas.

- Estou certa de que vai - concordou Nan - agora que a conheci, sinto que entendo verdadeiramente o que significa quando dizem que os olhos são as janelas da alma.

- Ela tem olhos bastante expressivos - concordou Diana, antes de mudar de assunto - ah, gente, podemos ir até o salão de festas? Sinto que não consigo passar nem mais um segundo sem tocar o piano!

- Diana, você tirou as palavras da minha boca - disse Gilbert, já saindo da cozinha.

Os seis entraram no grande salão, ainda admirados com o teto florido e toda a decoração.

Bert e Di já foram correndo se acomodar no piano, e depois de conversar aos sussurros por alguns minutos, começaram a tocar um dueto; a música soava romântica e triste.

Gilbert Blythe e Diana Barry eram amigos desde que se entendiam por gente, e antes disso. Suas mães costumavam ser melhores amigas, e foi Eliza Barry quem o amamentou em seus primeiros meses de vida; ele não se lembrava daquele detalhe, mas sempre tivera um carinho enorme pela senhora Barry.

Eles tinham uma amizade esquisita, baseada em fugir de aulas de piano e roubar bolinhos da cozinha antes do almoço. Eram mais irmãos do que amigos, se parasse para pensar, e poderiam ser confundidos como gêmeos por quem não os conhecesse - ambos tinham cachos escuros e fartos, olhos amendoados e uma atração anormal por tudo que fosse intenso (Anne e Tania exemplificavam aquilo) - e as vezes pareciam parentes até para quem os conhecia; tinham manias e tiques em comum (como torcer a saia/camisa nas mãos quando estavam preocupados), e liam movendo os lábios mesmo que não precisassem.

Gilbert cresceu correndo pelos corredores suntuosos da casa dos Barry e levando broncas de Di por jogar giz nela e nas amigas, e se alguém lhe perguntasse se Diana e Minnie May eram suas irmãs, ele não negaria.

Ao longo dos anos, as visitas e brincadeiras de esconde-esconde, e até mesmo conversas casuais se tornaram raras, mas eles ainda se compreendiam de uma maneira sobrenatural, e Diana havia sido a primeira pessoa a ouvir da boca dele que Gilbert Blythe amava Tania Stacy.

Então, não era surpresa que suas vozes soassem tão bem juntas.

O que foi uma surpresa, é que Gilbert cantava excepcionalmente bem. Sua voz era intensa e rouca, e harmonizava com a de Diana de um jeito que parecia sacudir os ossos de quem ouvia.

Tania estava um pouco hipnotizada.

Não que ela fosse a única; no momento em que o Blythe e a Barry começaram cantar, as duas Cuthbert, a Gilles e o Mackenzie pararam o que estavam fazendo para encarar os dois em assombro.

Quando terminaram de tocar, extasiados, seus amigos bateram palmas e assoviaram; Ruby tinha lágrimas nos olhos.

- Que música linda - ela disse - vocês compuseram?

- Baseada em um livro - confirmou Diana.

- É fenomenal - exclamou Anne - vocês tem talento, já pensaram em seguir carreira na música?

- Não seria adequado para uma mulher casada, Nan - falou a Barry, cética.

- Não se o seu marido for um bom homem e amá-la, Di - disse Gilbert imediatamente - acredito que já decidi minha profissão, mas você pode muito bem trabalhar com isso se quiser. Anne não é a primeira a dizer que você tem talento.

- Não quero falar nisso - encerrou o assunto.

...

Eles ficaram no salão por mais alguns minutos, apenas conversando sobre e sonhando com a festa; exceto Gilbert e Tania, que entraram em sua bolha particular quando ele começou a ensiná-la; fazia tempo que Nia não tinha aulas de piano, mas Bert ficou orgulhoso de ver que ela praticara durante a sua ausência.

Então a senhora Polly chegou para lhes dizer que o bolo estava pronto, e eles se apressaram até a cozinha. Lá, as irmãs Cuthbert atacaram seus pratos como animais famintos, e Blythe riu delas.

- Calado, Blitz.

- Jamais, Cumbeth.

Entretanto, seguiu o exemplo, sendo acompanhado por Ruby, que, ao invés de um animal faminto, parecia uma encantadora criança bagunceira.

Cole e Diana, ao contrário dos amigos, comiam devagar e comportados, e os outros riram deles e suas poses aristocráticas.

- Oras, vocês dois eram os que estavam com mais fome! Esqueçam a postura por um segundo, toda comida fica mais gostosa se você come fazendo bagunça - disse a Stacy, chupando o glacê do dedo anelar.

- Não, obrigada - retrucou a Barry, colocando uma colherada rasa na boca.

O loiro deu de ombros e pegou chantilly com os dedos.

- Vamos Di, deixe de pompa - insistiu Bert, que havia presenciado sua educação rígida - seus pais não estão aqui.

- Me deixem comer do jeito que eu quero!

- Abaixo à elegância, abaixo à elegância - a Gilles brincou, erguendo o braço acima da cabeça.

- Isso aí, Guilerma! - e os cinco começaram a cantar juntos, até que Diana cedeu, pegou a fatia de bolo com as mãos e deu uma grande mordida, e eles comemoraram.

The Fairy Queen - AwaeOnde histórias criam vida. Descubra agora