Capítulo 66

3.2K 284 6
                                    

Capítulo 66 — Lorena

— Tá fazendo o que ai? — pergunto pro Lucas, parado na parte da frente da casa dele, olhando pro telhado.

— Tentando pegar aquela pipa — ele aponta e eu vejo a rabiola caída pelo lado esquerdo da laje, no terceiro andar — tentei pegar pela janela do meu quarto, mas tava muito alto

Eu chego mais perto pra tentar olhar, penso em puxar de leve pela rabiola pelo quarto dele, mas o vergalhão da laje pode rasgar a pipa.

— Tem que ser essa, baby?

— É que essa daí foi meu pai que fez comigo, tia  — ele diz sem me olhar.

Porra, assim ele me quebra as pernas.

— Vamos tentar lá ​por cima da laje — chamo ele e a gente vai andando pro quintal.

Quando eu era criança, brincava muito de pipa lá na Penha, eu sempre brinquei com menino e com menina, independente do que dissessem. Fora, que essas eram as únicas brincadeiras que o meu pai participaria.

Subo com ele pela escadinha que tem lá por trás e vejo um soldado lá em cima, fazendo a segurança da casa​ pela laje.

— Tá precisando de alguma coisa, patroa? — ele me pergunta, andando na nossa direção.

"Patroa"​, é muito estranho eles me chamando assim.

— Não, vim tentar pegar uma pipa com o Lucas — sorrio e chamo o Lucas com a mão, andando até onde sei que tá a pipa.

— Ala, tia — ele aponta pra pipa presa no suporte da caixa d'água um pouco acima da altura da laje.

Eu apoio meu pé direito no muro na lateral e faço força com os braços pra subir no nível da caixa d 'água enquanto lucas e o soldado me olham.​ Presto atenção ao redor, vendo a vista da comunidade, inclusive do teleférico, e me lembro do passeio de helicóptero no ano novo.

— Quer subir pra ver a vista? — eu pergunto e ele me olha lá de baixo na dúvida.

— Eu te seguro, menor — o soldado fala pra ele e ele concorda.

O soldado ajuda ele a subir no muro e eu puxo ele pelos braços.

— Ali onde ela tá presa — aponto pra pipa com a linha embolada no vergalhão.

Ele desenrosca a linha enquanto eu ainda fico olhando a vista da favela.

— Ali é a minha escola — ele me mostra e eu olho na mesma direção com ele — E lá a pracinha que meu dindo me leva pra jogar bola.

— Fica parado aí que eu vou tirar uma foto pra mandar pra ele.

Pego o celular guardo na frente da minha cintura, mania minha, e abro a camera, tirando uma foto do Lucas fazendo joinha com os dedos

— Fiquei gato?

— Sempre, você é lindo — sorrio pra ele a abro o Whatsap​p, enviando a foto pro Matheus — Bora descer.

— Ai, maicon — chamo o soldado — segura ele aí

— Não, tia, daqui dá pra eu descer sozinho.

— Senta aí na beira então, e desce com cuidado​​.

— Boa, moleque — Maicon faz o toque com ele quando o Lucas aterrissa no chão — Não solta essa pipa não, guarda de lembrança do teu pai.

— Valeu, maicon. valeu, tia — grita animado quando tá descendo as escadas de volta pro quintal

— Ele vai querer subir aqui toda hora agora — eu rio, falando com o Maicon.

— Moleque é cria, po. Todo cria tem essa fase de subir nas lajes pra soltar pipa.

— Mãe dele me mata — eu bato uma mão na outra pra limpar a poeira do muro.

— Pretinho tava lá no portão, Princesa?

— Nem ele, nem chocolate — eu digo e o soldados bufa — Podia tá de plantão na barreira, aqui é tranquilinho.

— Lá pelo menos ia tá ligado nas novidades do morro — ele diz passando o fuzil pra frente, voltando pro posto dele.

—- Cada dia me impressiono mais com o nível de fofoqueiro de vocês — eu rio andando até a escada — Valeu aí, Maicon.

Eu fico com pena dele ali sozinho, muito chato tirar plantão assim, mas se eu começar a aliviar pra geral, vou criar uma bagunça na vida do Chocolate e do Pretinho. A questão é que ficar muito tempo sozinho e parado, tu começa a pifar, não é bom pra seguranca.

Abro o meu Whatsapp, quando chego no quintal, e vejo que o Matheus respondeu minha mensagem com a foto do Lucas.

Jogador: Lindão do ti​o
tá soltando pipa c ele?
Princesa: nn, fui só tirar uma que tava presa.​
Jogador: te amo, linda
obg por tudo
Princesa: te amoooo

Ando pra dentro da casa, mandando uma mensagem pro Pretinho também​.

Princesa: qq tu acha de um rodízio nos postos de contenção aqui da casa da Lais? Cada um fica um tempo, pra botar o cérebro desses menor para oxigenar.

Na sala, Lais tá deitada no sofá enquanto a Cecília assiste ao filme sentada no chão.

— Boa tarde — digo abaixando a cabeça perto da Lais que sorri fraco e vira a bochecha pra eu dar um beijinho — Como você tá?

— To melhorzinha hoje, muita saudade, mas tô tentando me distrair.

— Qualquer coisa me fala, tá? — passo a mão no cabelo dela e ela concorda – E você, Cecília, tá fugindo de mim?

— Não, amiga. Por que cê acha isso? — ela tenta fingir o máximo de naturalidade possível, mas são muitos anos de amizade

— Tu é falsa, né​? A gente mora juntas, hoje é dia cinco de janeiro e eu não te vejo desde o ano passado. Quando eu vou pra casa, você tá aqui, quando eu venho aqui você tá na boca e quando eu vou pra boca, tu também não tá lá.​— cruzo os braços ainda em pé — Tá com medo de me contar que deu pro Leão?

—- Eu te falei que ela ia descobrir — Lais senta no sofá rindo, é a primeira vez em quase duas semanas que eu vejo ela rindo

— Você contou pra Laís? — pergunto indignada, sentando no sofá.

— Você ia me julgar!

— E ela não julgou não?

— Óbvio que eu julguei — ela diz dando pause no filme.

Sinto meu celular vibrar e vejo a mensagem pela barra de notificação.

Pretinho: acho bom
vou vê com chocolate

— Sabe quem tá me mandando mensagem? — desvio meu olhar do celular pra Cecília — Pretinho

Ela se joga no chão e passa a mão no rosto

— Vai ficar careca — Laís di​z apontando pra Cecília

—  Isso porque até um mês atrás ela nem pegava traficante.

— Você duas tão falando do que? Nenhuma das duas tem moral nessa história — ela se irrita levantando pra sentar no outro sofá.

— Eu dei pra um traficante só, a minha vida inteira — Laís rebate rindo  e aponta pra mim — E ela era piranha, mas era uma piranha armada.

— Ninguém vinha me cobrar pra não ter que conhecer a ponta da minha glock — mostro pra ela a arma presa no meu quadril.

— Você vai ter que me ensinar a atirar, vou aceitar o cargo que o jogador quer me dar — ela faz um biquinho de pensativa enquanto deita a cabeça no braço do sofá.

— Meu Deus, tu faz tudo ao contrário do que eu falo pra você, né? — Laís diz negando com a cabeça e levanta do sofá indo em direção a cozinha.

— Vai se acostumando, amizade com ela é assim — falo e jogo uma almofada na cara da Cecília.

Sonho dos crias [M]Onde histórias criam vida. Descubra agora