Capítulo 69

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Capítulo 69 — Lorena

Hoje passei a manhã inteira na boca sozinha, deixei os meninos no treinamento com o Chocolate, mas preciso terminar de analisar o inventário das armas, Jogador quer fechar uma compra de munição com o Leão e a gente precisa disso pronto. Estamos aos poucos começando a nos alinhar pra guerra que vai chegar, mas sinto que vai demorar mais do que a gente espera.

Sempre penso no resultado desse confronto. Busco as possibilidades de não ser eu a ter que colocar uma bala na cabeça do meu pai. Tenho todos os motivos do mundo e sei que vivo ele não vai ficar, já aceitei, ele não merece viver, só não quero ter que lidar com a culpa.

O alemão tá muito à frente, fora a ajuda que vamos receber da facção e não é atoa que comandamos a maior parte das favelas do rio.

Me intriga justamente isso, queria ir até lá, sentar na mesa dele e ouvir os pensamentos que ele teve. Porque não acho possível ele ter acreditado nesse plano ridículo, levou o Sábio pro buraco, mas vai cair na própria vala.

Toda vez que vem à mente a imagem que idealizei do Capitão rendido, lembro dele colocando uma arma na minha mão aos doze anos, lembro dele dizendo que me amava e do carinho que me deu na vida. Pode ser mentira, a minha vida inteira pode ter sido enganação, mas não deixa de doer, porque essa foi a única referência de carinho que já tive.

Passo a mão direita no rosto e respiro fundo, tentando me concentrar, porque esses pensamentos só vão me fazer mal. Impossível extrair qualquer coisa de bom na criação filha da puta que eu recebi.

"Princesa, na escuta? Tem uma mina aqui na frente da boca querendo falar contigo" ouço rádio chamar.

— Pode deixar entrar — Respondo apertando o botão do radinho, mesmo sem saber de quem se trata, não tô esperando ninguém.

Viro a cadeira um pouco em direção à porta e vejo aparecer uma menina branquinha de cabelo super preto. Lembro dela, conheci quando fiz a primeira ronda na comunidade com o concha.

— Oi — ela me diz sem graça.

— Oi, entra aí — sorrio pra ela e volto a virar a cadeira pra frente da mesa — Lembro de você, lá do bar. O menino falou que você queria falar comigo, qual seu nome mesmo?

— Kemily — diz sentando na cadeira — Fiquei com medo de você não lembrar de mim.

— Lembro, eu tava com o Concha — pego um protetor labial que tava em cima da mesa e passo na boca — Você até me apresentou seus pais, seu pai ama o Jogador.

— É, ele ama mesmo — fala e eu sinto um incômodo na sua voz.

— Aconteceu alguma coisa? — franzo a testa — Tá precisando de ajuda?

— Olha, Princesa — ela endireita a postura — Sei que você não me conhece direito, mas eu acho que tu é a única pessoa que vai conseguir me ajudar, então eu pensei muito antes de vir falar com você.

— Se eu puder, vou ajudar — olho pra ela em tom de segurança, ainda sem entender onde ela quer chegar.

— Meu pai tá doente e o único meio de sobrevivência da nossa família sempre foi o barzinho, ele me criou assim — Joga o cabelo pra trás da orelha — Só que médico, remédio, tratamento... Essas coisas são caras, sabe? E por mais que eu fique lá, a gente não tem muita estrutura e eu não tô conseguindo levantar o dinheiro que ele precisa pra se cuidar, minha mãe tá sofrendo muito por causa disso tudo também — Ela explica e eu concordo, imaginando o quão difícil deve ser — Por isso vim ver contigo, a possibilidade de você me arrumar um trabalho no movimento — eu fico meio chocada com o pedido dela, não cogitei isso nem por um segundo — Te admiro, vejo como geral te olha com admiração também, sei que a única pessoa que pode me colocar nessa vida é você.

— Se for só pelo dinheiro — eu abro a gaveta da mesa e jogo um paco de dinheiro pra ela — Leva esse agora e eu vou pedir pra Laís te dar uma oportunidade lá no salão dela, não precisa entrar pro tráfico assim no impulso — digo, mas ela nega com a cabeça.

— Começou com dores nas costas e articulações, mas depois do repouso que ele teve que começar a fazer, vieram as confusões mentais, esquecimentos, e agora os médicos do postinhos cogitam até Alzheimer — ela me olha e passa a mão no nariz vermelho, indicando o quanto se emociona quando fala do pai — Tu sabe que na honestidade, eu nunca vou conseguir dar as condições que meu pai precisa e merece.

— Pega — eu aponto com a cabeça pro rolo de dinheiro — Vai pra casa e pensa mais sobre isso, por enquanto eu vou te ajudando.

— Eu já pensei — ela joga a cabeça pra trás — muito

— Pensa de novo — pego o dinheiro e estico pra ela — Pensa de lá, que eu penso daqui.

— Não conta pro Jogador — ela diz e eu aperto os olhos — Ele vai querer bancar o herói, sempre gostou do meu pai, mas isso é responsabilidade minha.

— Eu não posso colocar alguém no movimento sem falar com ele, Kemily.

— Eu tô segura disso, Princesa — ela passa as duas mãos no rosto — achei que você, entre todo mundo, ia entender o que eu tô falando.

— Eu entendo, só que não é assim que as coisas funcionam. Se tu soubesse da minha vida... — eu abro os braços — Uma desgraça atrás da outra, o tráfico te cobra. Cobrou o Sábio e tá cobrando todo mundo que tá na correria aí.

— Eu não quero benção — ela apoia os cotovelos na mesa e me olha — Quero poder dar uma vida boa pros meus pais, o que vier de consequência pra mim, quero que se dane — dá de ombros.

— E tu já pensou na possibilidade da sua mãe não aceitar isso? — eu questiono — Não aceitar esse dinheiro sujo.

— Meu pai tá morrendo, ela não tá podendo ser orgulhosa agora.

— E a admiração deles, não te importa? — pergunto, sei que é covardia, mas preciso saber o quanto ela já pensou nessa possibilidade.

— Me importa — ela balança a cabeça positivamente — Mas me importa mais que fiquem vivos. Eles podem escolher nem olhar mais na minha cara, mas se aceitarem a merda do dinheiro pra sobreviver, eu já tô satisfeita — ela funga, engolindo o choro.

— Leva esse dinheiro — aponto mais uma vez pro bolo de dinheiro que ela nem tocou — Isso é o que tu ganharia em duas semanas de trabalho na boca, marca uma consulta pro teu pai, conversa com a sua mãe e me deixa pensar mais um pouco.

— Se você não aceitar, vou pedir em outra favela — ela diz e eu rio.

— Tu mesma já disse que a única que te daria chance sou eu — me encosto na cadeira e sorrio — Além do mais, eu faria questão que nenhuma favela da facção te aceitasse, porque você ia morrer sem um treinamento adequado pra mulher no crime e eu não ia querer o peso da sua morte nas minhas costas. Não ia querer ser omissa e deixar a sua mãe passar por mais um momento difícil.

— Eu peço abrigo em favela rival — ela me desafia e eu me esforço pra não rir. Eu sei que ela tá me dizendo isso só pra provar que essa é a decisão final dela.

— Aham, aí no seu conto de fadas — eu aponto pra ela — um dono de morro rival e machista, vai dar trabalho pra uma menina nascida e criada no Alemão. Acorda, cara, nós tamo em guerra, meu pai me traiu, traiu o afilhado dele, quem vai acreditar em você? O crime não é o creme não.

— Então me dá essa oportunidade, Princesa, por favor — ela suplica, sem ter mais nenhum argumento pra me apresentar.

— Já te falei que vou pensar. Tenho que falar com o Jogador, ele é o dono disso aqui — aponto pro dinheiro e ela pega, colocando no bolso — Agora vai, qualquer hora te chamo pra gente conversar melhor.

Vejo ela sair da sala e bufo. É uma situação difícil, ela só falou verdades sobre os limites que a honestidade impõe pra uma menina favelada.

Fico pensando na quantidade de homem que entra no movimento exatamente pelo menos motivo e ninguém questiona... Não consigo definir qual de cara é meu papel nisso, sou bandida, coloquei a Cecilia nesse mundo do crime... É difícil.


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E aí, Kemily vai se envolver?
bota sua ideia de vulgo aí

Sonho dos crias [M]Onde histórias criam vida. Descubra agora