Capítulo 52 — Jogador
Quando eu era moleque briguei com meu irmão por causa de uma pipa, tomei um esculacho tão grande do meu pai que nunca vou esquecer. Ele não admitia que a gente brigasse, ainda mais por uma parada tão fútil. Depois do esporro, Nanau apontou pro meu irmão e disse que aquele ali era o único amigo que eu poderia contar pro resto da vida e que se a gente quisesse, juntos, poderíamos ter a porra de uma fábrica de pipa. Meu pai teve quase nenhuma instrução, mas as ideais que ele mandava, deixava qualquer um pensativo por no mínimo uma semana.
Depois daquele dia, eu nunca mais briguei com o Sábio, primeiro porque eu tinha um medo do caralho de levar outro esculacho do meu pai, mas com o tempo eu fui percebendo a verdade naquele discurso, tá ligado?
Quando minha mãe morreu e meu pai se afundou, quem tava lá era o meu irmão, sem experiência nenhuma, tentando ser o pilar de uma família de três homens fodidos da cabeça. Quando meu pai se reergueu, Sábio tava lá, sendo o meu parceiro pra curtir os momentos bons, sempre me dando espaço pra crescer e fazendo questão que a gente caminhasse lado a lado. E quando quebraram meu pai, Sábio mais uma vez matou tudo no peito, o morro, a família, os problemas. Mesmo pensando diferente, discordando várias vezes, condutas tão opostas, quem era eu pra peitar meu irmão? Meu pai tinha mandado o papo mais reto da minha vida e eu só percebo agora, agora que ele chegou no BW antes de mim.
Tiram o corpo dele dos meus braços e eu não consigo tirar da minha mente as palavras da Lorena no celular. Fazendo um pensamento rápido, somando as paradas, a ideia mais lógica é que essa traição não foi só do fudido do BW. Tento afastar tudo da minha cabeça, como se eu pudesse deitar na cama pra dormir e acordar amanhã com todas as coisas no lugar.
Lorena tá em choque, Pretinho tenta falar com ela, mas ela não responde, apenas chora. To sentindo uma pressão infernal no peito, não consigo admitir que isso seja verdade. Fecho os olhos e abaixo a cabeça, ainda sentado no chão, tentando respirar fundo.
— Os filhos da puta recuaram — Pretinho me diz.
— Faz a limpa na favela. Quero enterro digno pra todos — passo a mão no meu rosto, pra limpar o sangue e as lágrimas, e me levanto. Pretinho segue o olhar pra Lorena e depois pra mim — Leva ela pra casa dela — digo e ele concorda.
— Jogador — ele me chama quando eu sigo pra sair da viela — Sinto muito, meu faixa.
— Esse é o nosso destino, irmão. Infelizmente.
É a mais pura verdade, quem tá nessa porra de vida e sonha com o felizes para sempre é iludido. Não existe. O crime te cobra de volta tudo que te deu, te cobra com a vida, de um jeito ou de outro. E meu irmão hoje pagou da pior forma.
Passo direto pelo Pikachu e pela Princesa. Saio andando pela favela, uns quinze homens de fuzil atrás de mim. As ruas tão vazias, moradores dentro de casa e comércios fechados. No chão só vejo cápsula e corpos.
Ando pra caralho até chegar na porta da casa do Sábio e da Laís, mas não sinto minhas pernas doerem, só minha cabeça latejar e as lágrimas correrem pelo meu rosto. Chocolate libera a passagem do portão, só me olha e não diz nada. Geral do movimento já deve tá ligado no que aconteceu.
Eu olho pra baixo e vejo minha camisa encharcada de sangue, tiro ela, limpo um pouco o que escorreu pra minha perna e jogo no chão.
— Conversa com a Tia Solange lá, depois pede pra ela vir aqui rápido. Preciso de alguém pra ficar com a Laís — peço pro Chocolate e ele concorda.
Entro na casa e respiro fundo, tentando controlar minhas emoções pra poder contar pra uma mãe grávida que o marido não vai voltar pra casa. Eu vim aqui direto resolver isso porque não quero que eles saibam pela boca de qualquer outra pessoa, tem que ser um papo dado por mim, porque agora quem tá na proteção deles sou eu. Agora é eu e eles, mas como eu vou ser o suporte de alguém se eu tô todo quebrado por dentro. Não tenho resposta de nada, nem do que eu sinto.
— Laís — chamo na ponta da escada, sentindo meus olhos queimarem.
Ela aparece, alguns segundos depois, desce uns três degraus e Lucas vem atrás. Meu coração acelera pra caralho e eu passo a mão na boca.
— Lucas, sobe — ela diz quando me vê e seus olhos enchem d'água
Eu me ligo que isso vai ser mil vezes mais difícil do que eu fiquei me preparando no caminho.
— Mas meu tio tá machucado? — ele desce mais um degrau, preocupado com o sangue.
— To não, meu parceiro — engulo em seco — Já vou lá falar contigo. Agora obedece sua mãe.
Ele me olha mais uma vez, depois pra mãe e sobe as escadas de volta pro quarto. Laís me encara e termina de descer os degraus, uma mão no corrimão e outra na barriga, eu fico sem palavras, papo reto. Sábio sonhou demais com essa família.
— Jogador — ela chega mais perto de mim — Se tu veio na minha casa dizer que o meu marido foi morto nesse tiroteio, pode sair — ela aponta pra porta, se tremendo.
— Laís — tento falar, mas ela me interrompe.
— Não, tu não vai dizer que ele morreu. Eu não vou aceitar, Matheus —grita e as lágrimas começam a rolar no rosto dela — Porque ele não ia morrer e me deixar criando dois filhos sozinha.
— Senta no sofá, por favor. Vamos conversar com calma. Lucas vai ficar assustado lá em cima.
— Conversar com calma o caralho, Matheus. Eu não vou ter porra de calma nenhuma. Eu pedi tantas vezes, falei tanto pra ele: "Cuidado, tu tem dois filhos pra criar". Ele tinha uma porrada de soldado pra ir pra confronto, não precisava ir, ficava em casa, sossegado, agora tu vem dizer que ele morreu. Eu não aceito — ela chora e berra na minha cara.
— Cunhada, eu sinto muito, mas pensa na Dadai, tu tá grávida, não pode passar mal. Pensa no Luquinhas que vai ouvir você gritando assim — ajudo ela a sentar no sofá.
— E qual vai ser a diferença? Meu filho vai sofrer do mesmo jeito e eu não posso fazer nada pra mudar isso — ela tenta engolir o choro e não falar tão alto quanto antes — Minha filha vai nascer e crescer sem a porra do pai que sonhou com ela várias noites.
A porta da sala é aberta e entra tia Solange , vem até a gente e segura a minha cunhada nos braços.
— Tia, o que eu fiz pra Deus? Deus não gosta de mim — ela grita e chora.
— Não fala assim, minha filha. Deus te deu uma família linda.
— E tirou o pai dos meu filhos — Chora no colo da Tia Solange, sem parar.
Eu não tenho o que falar pra ela, meu peito tá pesado. Não consigo ter a visão de nem um palmo de futuro na minha frente.
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Sonho dos crias [M]
Fiksi PenggemarE fé no pai, sei Que todo mal contra mim vai cair por terra Nós gosta da paz, mas não fugimos da guerra Paz, justiça e liberdade, fé nas crianças da favela Eu vivo a vida e amanhã não me interessa Lorena, vulgo Princesa, tá terminando a faculdade d...